Sentimento do Mundo
Referência no jornalismo político, Fernando Mitre fala, em entrevista exclusiva, sobre sua trajetória na Band marcada pela defesa da democracia
Fernando Mitre, diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes, em seu escritório no Morumbi (Alexandra Itacarambi)
O que me levou a encontrar com Fernando Mitre, diretor de jornalismo nacional da Rede Bandeirantes desde 1990, não foi a notícia da troca de direção no jornalismo, mas o Líbero Badaró, o jornalista mártir da liberdade, assassinado em 20 de novembro de 1830.
Ano passado, 35 anos depois da realização do primeiro debate presidencial do Brasil, após os 20 anos de ditadura, Mitre não encontrava a estatueta do Prêmio Líbero Badaró de Jornalismo, que havia deixado na Band, e me procurou por intermédio do jornalista Moises Rabinovici.
O troféu foi pela sua contribuição à imprensa, um legado que se mantém até hoje, sendo a Band a protagonista dos debates eleitorais, que se aprimoram ano a ano. Reconheceu o momento histórico que a TV Bandeirantes produziu, o debate de 1989. “Aquele primeiro debate entre candidatos à presidência da República, depois de todos aqueles anos de ditadura, repressão e censura, mostrava o seguinte: a democracia chegou no Brasil e, naquele momento, aquilo era uma emoção permanente.”
“E, além do mais, eu olhava ali no estúdio, colegas que tinham sido exilados, outros que tinham sido presos, outros que ficaram censurados por tanto tempo. Aquilo foi uma grande emoção, além de ter sido um fato histórico fundamental. E o Prêmio Líbero Badaró veio reconhecendo tudo isso e fortalecendo essa história”, explica.
Anos depois, Mitre também participara da banca de notáveis que escolhiam os trabalhos vencedores. “A reportagem sempre foi fundamental. O Líbero era a valorização do repórter, da reportagem, do profissional de imprensa. Tudo isso continua e sempre será importante.”
Razão e sensibilidade
A sala do diretor de jornalismo da Band é iluminada, em todos os sentidos. Tentamos um fundo para que o contra luz não atrapalhasse a gravação. Os livros estão em todos os lugares. No vidro, em frente à cadeira do diretor, está o poema de Drummond “Sentimento do Mundo”, que também é o título do terceiro livro (1940) do escritor mineiro. Durante a entrevista, Mitre admite, modesto, “acho que eu entendo um pouquinho de alguma coisa, que é a teoria literária, sou capaz de analisar um poema”.
Devia ter perguntado o que aquele poema significava para ele, mas não o fiz. Só me ocorreu que meu pai tinha igualmente um quadro com dizeres de Drummond que sempre mantinha por perto. O poema, contudo, segundo professores de cursinho, demonstra a sensibilidade de Drummond de forte cunho social, no pós-segunda guerra mundial.
“Eu almocei com o Sinval [de Itacarambi Leão, meu pai] quando ele estava criando a revista [IMPRENSA]”, disse logo que cheguei.
O lado sensível de Mitre foi aparecendo no decorrer da nossa conversa. “O Mino [Carta] era um grande editor, inclusive com um talento enorme, como artista plástico. Era um pintor, além de tudo. Um cara absolutamente dedicado, com uma sensibilidade enorme, muito culto, interessado demais no destino do país.”
Com medo de citar nomes e esquecer alguém, mencionou o Fernando Barbosa Lima [filho de Barbosa Lima Sobrinho], seu primeiro chefe na televisão. “Fiz com ele alguns programas e aprendi muito. Grandes profissionais, nunca faltaram na história da Band, tem sempre profissionais brilhantes, repórteres brilhantes.”
Democracia explícita
“Em 1989, eu fiz o primeiro debate presidencial na Band. Mas eu cheguei antes. Fiz um documentário em Cuba dois anos antes. Acho que eu vim em 86”, disse Mitre ao recordar que, nos anos 80, foi a Cuba para produzir um documentário que mostra que um dos pilares da Revolução Cubana foi a vigilância contra os supostos inimigos do regime.
“A Band tem uma tradição, inclusive democrática, que é marcante. Foi a primeira a transmitir ao vivo o comício das Diretas que as outras televisões estavam olhando com muito cuidado. A Band meteu lá suas câmeras e transmitiu ao vivo. Para você ter uma ideia, durante a ditadura, mandou um repórter ao exterior, entrevistar líderes políticos exilados como o Luis Carlos Prestes, no auge da ditadura e o Brizola – uma entrevista feita pelo Evaldo Dantas, grande jornalista, que era diretor da Band. Naquele tempo isso era uma ousadia, então a história da Band se encontra com a democracia o tempo inteiro.”
Ao perguntá-lo sobre o que aprendeu nesses 60 anos sobre o jogo da democracia, Mitre respondeu: “Eu aprendi tudo que foi possível. E o meu livro ‘Debate na Veia’ mostra isso”.
Ele se orgulha do livro, de seus 62 anos de experiência com o fato político. E da cobertura que fez, ainda inexperiente, do comício do Jango no dia 13 de março de 1964, na Central do Brasil. “Eu estava ali com a minha sensibilidade e vi claramente que o governo Jango estava começando a dar sinais de que não ia sobreviver. Então, eu vi a democracia morrendo. Vinte anos depois, já como diretor de redação no Jornal da Tarde, editei toda aquela cobertura das Diretas. Vi a democracia renascendo.”
Reservado em alguns assuntos, Mitre se sente à vontade para falar de democracia e política, e continua. “Alguns anos depois, aqui na Band, produzindo aquele primeiro debate, o segundo, o terceiro e o quarto, entre candidatos à presidência da República, os primeiros da história, eu vi a democracia ‘se consolidando’. É evidente que quando eu falo consolidando, eu estou sendo otimista, estou pondo aspas aí. É preciso continuar cuidando dela. Mas ela está firme e forte. E eu tive a oportunidade de viver esses três momentos.”
Discurso direto
Em seu livro publicado em 2023, o literário Mitre revela os bastidores dos debates políticos proseando com o leitor. Ele me contou este episódio.
“Quando nós fizemos aquele primeiro debate em julho de 89, é claro que aqui foi precedido de inúmeras reuniões, dificuldades de todo tipo, dúvidas dos candidatos, eram 10 candidatos. E eu tinha saído da mídia impressa, as pessoas falavam comigo:
- Mitre, é impossível fazer isso, como é que você vai colocar 10 caras?
E aí eu recebi um conselho sábio, um colega meu, um pouco cínico:
-Mitre, aproveita que você não entende de televisão e faz um debate.
Então, eu pensei o seguinte, se eu estiver andando na rua e encontrar numa esquina o doutor Ulisses, o Roberto Freire, o Lula, o Brizola, o Maluf, o Aureliano Chaves, eu vou parar para ouvir.
- Por que não colocar esses caras no estúdio? Todo mundo pode ouvir.
A ideia foi essa. E o primeiro debate foi uma coisa assim, tinha uma espontaneidade muito grande no decorrer do debate. As regras não eram rígidas, tão rígidas como se tornaram depois. Foi um espetáculo. Aquilo virou uma espécie de expressão democrática na TV com tudo que tinha direito.
Tinha alguns confrontos ali, as pessoas não se esquecem mais, por exemplo, do Brizola com o Maluf. Aquilo só aconteceu por causa da liberdade das câmeras, não tinham aquelas câmeras fixas, como tem hoje, tudo com regras aprovadas, discutidas em reunião, não. Aquilo eu fazia, mais ou menos intuitivo, com a ajuda de alguns profissionais aqui que já dominavam a televisão, como o José Emílio Ambrósio, por exemplo, que dirigiu o debate do ponto de vista televisivo.
E saiu aquele momento democrático na própria intimidade do debate. Aquilo ali era democracia líquida, explícita.”
Tudo mudou
Hoje, nos primeiros cinco minutos do primeiro bloco do debate, as falas já estão fragmentadas, editadas, mexidas, espalhadas pelo país e pelo mundo. “Mudou tudo, tudo inteiramente. Então, isso mostra como é a importância de um debate hoje, como ele é consumido. O próprio consumidor do debate edita também. É uma coisa incrível isso. Essa pedra no lago, é uma pedra no lago que vai se reproduzindo.”
Conta que naquele primeiro debate, que foi precedido de muitas reuniões, discussões de regra e os candidatos desconfiando disso e daquilo, num certo momento, uma questão foi colocada na mesa:
- O que é que a Band vai fazer depois do debate? Como vocês vão editar esse debate? Vai pôr nos telejornais como?
“Teve um candidato que queria vir aqui ver a edição da parte dele do debate, imagina. Houve um momento, num daqueles quatro debates, que essa discussão ficou tão importante. Estava até começando a ameaçar a realização do debate, que falei, ‘então eu vou fazer o seguinte, eu só ponho o ‘boa noite’ de vocês no telejornal, não edito nada.” E assim foi.
História e Cultura
Aos 84 anos, Fernando Mitre coloca ao lado dos debates o projeto editorial do Bicentenário da Independência criado um ano antes, em 2021, com 82 reportagens especiais sobre a história da independência no Brasil. “Tiramos a história dos museus, das universidades, dos livros e colocamos no horário nobre da televisão. Você imagina? Para mim, aquilo foi importantíssimo. Fizemos 12 programas especiais de entrevistas com historiadores.” O projeto, que incluiu um convênio de cooperação com o Senado Federal, pode ser visto no canal do Youtube da emissora.
A inovação é isso, num certo momento ela é vanguarda, abre o caminho, depois ela passa a ser histórica, ou vira a norma. “Esse projeto de história do Brasil, por exemplo, imagina você numa reunião pela primeira vez, ‘vamos fazer uma série de reportagens com os livros de história do Brasil, para o horário nobre. Vamos fazer 82 reportagens de cinco minutos’. Parece uma loucura. E, no entanto, foi feito com sucesso absoluto. O jornalismo ao vivo da Band é muito dinâmico, sempre foi.”
Professoral
Pergunto sobre a relação do jornalismo com a história e a cultura, e o jornalista veterano diz “fundamental” e repete a fórmula, aqui resumida, do que já havia ouvido na recente entrevista que concedeu para a ABI sobre os três deveres fundamentais do jornalista.

“O primeiro é o compromisso com a realidade factual. Isso é uma coisa fundamental, não se pode mexer nisso, não se pode brincar com isso. Não vale nem a pena discutir isso, porque esse é um dever intocável. O jornalista detecta o fato, que não é a notícia, o fato é o núcleo da notícia, e transforma o fato em notícia. E aí já entra a linguagem. Então, transformar o fato em notícia já é um grande desafio, não é tão simples. Você tem o perigo da distorção que pode acontecer, por razões técnicas.”
Cita os “Sete Pecados Capitais da Imprensa” do pensador inglês Paul Johnson - um artigo publicado no Jornal da Tarde em 1993 -, onde um dos pecados é a distorção. “O segundo desafio é pegar esta notícia e dar uma dimensão a ela, dimensionar o fato. Quer dizer, dar condições ao consumidor da notícia que entenda essa notícia. E o terceiro é a postura crítica do jornalista dentro do fato. Mas são três aspectos.”
Defende que no meio de todas essas fake news, esse festival de confrontos com a realidade em si, o jornalismo profissional é fundamental, e tem que dar exatamente isso, uma base factual comum, que serve para todo mundo.
Já a polarização, ele vê como um mal que assola a nossa política, mesmo porque a polarização ataca muita coisa, mas ataca principalmente a qualidade do debate político, esvaziando o debate de conteúdo.
A imagem e a palavra
Fernando Mitre vem de um jornalismo inicialmente dominado pelo texto, pela escrita. E completa sua carreira numa redação que não só envolve a televisão linear, mas também as plataformas digitais e sociais, onde o vídeo (e curto) impera.
“É engraçado que você faz essa pergunta. É um dos pecados capitais do Paul Johnson, que é o uso das imagens, às vezes em detrimento da informação. E é um desafio permanente na televisão. Você editar as imagens junto com o texto, com as palavras. Uma imagem mal editada pode deformar o fato. Tudo depende da edição. Então, a precisão aí é aquela exigência permanente, e quanto mais dedicado, preparado, experiente e profissional for, maior garantia você tem.
O que não significa que um jovem profissional não tenha também suas condições. Às vezes o jovem leva algumas vantagens em relação ao profissional mais experiente. Uma redação perfeita mistura três gerações. Eu fiz muita coisa na minha vida que, se eu fosse muito experiente, talvez eu não tivesse feito.”
A descoberta do talento
“Agora na Band temos um novo comando, Rodolfo Schneider, ele trabalhou comigo, agora trabalho com ele”, anuncia o veterano. Já havia se referido ao jornalista como um “líder nato”.
Na visão de Mitre, existem muitas formas de encontrar um talento. “Às vezes, você descobre um jovem jornalista que tem uma sensibilidade incrível para levantar assuntos e fazer grandes pautas criativas. É um talento especial. Alguns têm uma vocação literária fundamental. É um grande texto. Então, vamos investir nisso. Às vezes, ele é um líder de equipe. Tem várias possibilidades. Muitas vezes um jornalista com um desses talentos vive dignamente, cumpre a função dele.”
Empolga-se ao dizer que conheceu alguns como vários talentos juntos, jornalistas completos, como o caso de Mino Carta e de Murilo Felisberto, seus chefes no Jornal da Tarde. Afirma que jornalistas talentosos nunca faltaram na Band.
E o maior desafio?
A resposta chegou novamente com uma racionalidade cartesiana que o desafio do jornalismo é estar contido ali naqueles três deveres: “É o dia a dia”. Mas Mitre demonstra na voz e na expressão o sentimento do mundo: “É muito difícil o dia a dia. No jornalismo, você não pode relaxar”.
Prestes a completar seus 40 anos de Band, Mitre já está com sua estatueta do Líbero em casa, feita a partir do molde original e “filho único” que estava no acervo de IMPRENSA. O assassinato do Líbero Badaró é apontado, no capítulo “Brasil surge com ajuda da imprensa”, da série histórica da Band, como um dos motivos para o enfraquecimento de Dom Pedro I e para a transição do regime. Pela sua luta e trabalho jornalístico, Líbero Badaró é um marco nacional da liberdade de imprensa e da democracia.
O troféu, uma obra tridimensional com a imagem de um homem tenso com gesto de grito, é mais um símbolo de tantos anos de trabalho do jornalista Fernando Mitre em prol da democracia.





