Nossa mídia ainda com H maiúsculo
O setor de comunicação no Brasil segue vulnerável à misoginia pela escassez de mulheres no comando de empresas de grande porte e redações
A cerimônia de lançamento no dia 12 de dezembro de mais um canal de notícias no Brasil - o SBT News - tinha tudo para ser uma daquelas notícias dadas com destaque só mesmo no SBT, enquanto os outros veículos apenas fariam um registro ou simplesmente ignorariam a novidade.
Tudo mudou quando o cantor Zezé di Camargo resolveu roubar a cena com um ataque direto (e grosseiro) às dirigentes do SBT por convidarem representantes do governo e da justiça federais para o evento.
Para o cantor, a viúva e as filhas de Silvio Santos, que assumiram os negócios da família desde sua morte em agosto do ano passado, estavam ‘se prostituindo’ ao receberem na cerimônia o Presidente Lula e o Ministro do STF, Alexandre de Moraes.
E continuou com o ataque ao sugerir que as filhas de Sílvio Santos estavam divergindo do pai e que ‘filho que não honra pai e mãe não existe’.
Desde a confusão inicial, Zezé di Camargo pediu desculpas pelas declarações e disse que a expressão teria sido mal interpretada, justificando o uso da referência a prostituição não por desrespeito às mulheres da família Abravanel, mas por seu ‘sentido figurado, sem qualquer intenção ofensiva ou de cunho de gênero’.
Nunca vamos saber se o cantor teve mesmo ou não a intenção de criticar as donas do SBT com uma boa dose de misoginia, mas é difícil imaginar que teria dito o mesmo e da mesma maneira se o autor do convite e anfitrião não-holográfico do evento tivesse sido o próprio Sílvio Santos (que, aliás, dado seu histórico de pragmatismo político, quase certamente teria feito os mesmos convites).
Mas o debacle envolvendo o cantor e o canal onde tinha gravado um especial de fim de ano (depois cancelado) trouxe à tona algo maior: o setor de comunicação no Brasil pode estar ainda mais vulnerável à misoginia por continuar sendo, basicamente, um setor ‘homem com H’, praticamente sem mulheres no comando das empresas ou das redações.
A Folha de S. Paulo poderia ter dado um bom exemplo de ter uma mulher no comando de um grande veículo nacional, mas a experiência durou pouco. Em 2018, Maria Cristina Frias ocupou a direção da Folha de S. Paulo após a morte do irmão, Otávio Frias Filho, mas caiu no ano seguinte, como consequência de batalhas internas e na justiça envolvendo os outros dois sócios - seu irmão, Luiz Frias, e Fernanda Diamant, viúva de Otávio.
Para ser justo, mulheres como diretoras de grandes empresas de comunicação ainda são raras no mundo todo, mas isso não justifica a ausência de uma liderança mais diversa aqui no Brasil ou no resto do mundo.
E muito menos comentários carregados de tons sexistas e misóginos.
Aliás, o comentário de Zezé di Camargo não foi o primeiro (e provavelmente não será o último) a sugerir uma boa dose de preconceito e misoginia.
Um dos primeiros alvos foi Katharine Graham, talvez a mais famosa publisher da história, que passou a comandar o Washington Post a partir de 1963, após a morte do marido, Philip Graham.
Katharine estava no comando no começo dos anos 70, quando apoiou as investigações de Bob Woodward e Carl Bernstein sobre o envolvimento do então presidente, Richard Nixon, no que ficou conhecido como o escândalo de Watergate.
Num momento em 1972 em que o jornal estava para publicar uma nova reportagem sobre o escândalo, o então Procurador Geral do governo Nixon, John Mitchell, mandou recado para Katharine através do repórter Carl Bernstein, alertando que ela iria terminar com ‘as tetas presas numa enorme calandra’ se fosse adiante com a publicação.
Claramente a ameaça não teve o efeito desejado. Ela autorizou a publicação, inclusive com a fala de John Mitchell (mas sem a palavra ‘tetas’) e o governo Nixon implodiu eventualmente com o escândalo.
Ter mais mulheres em posições de direção nos meios de comunicação e uma liderança mais diversa sempre fez sentido moral e de mercado.
Talvez seja mais importante do que nunca já que entramos numa era em que as redes sociais alimentam um novo (e potencialmente violento) tipo de machismo junto aos jovens, as big techs (dominadas por homens) ficam cada vez mais musculares, e líderes como o Presidente Trump nos EUA tornam abusos verbais a mulheres repórteres em algo rotineiro e sem reprimendas.
Para o SBT, boa sorte com o SBT News – teoricamente uma boa notícia para a pluralidade mediática no Brasil e para empregos no setor.
E para as dirigentes do grupo, desejos de sucesso na empreitada, com menos misoginia e mais respeito não por serem viúva e filhas, mas por serem acionistas e profissionais do setor. ◼





