O que diz o “PL do streaming” aprovado na Câmara?
O padrão territorial na votação do PL reforça os interesses regionais ligados à produção e circulação de conteúdo audiovisual no país
Por Juliano Domingues*
O Brasil deu um passo decisivo na regulação do mercado de conteúdo audiovisual por demanda (CAvD), internacionalmente conhecido como VoD (Video on Demand). A Câmara dos Deputados aprovou, no dia 5 de novembro, o Projeto de Lei n.º 8.889/2017, que cria regras específicas para o funcionamento das plataformas de streaming e pode redefinir o futuro da produção audiovisual no país. Três pontos se destacam como mais sensíveis e objeto de disputa entre os grupos de pressão que buscam influenciar o processo legislativo.
O primeiro trata das cotas de conteúdo nacional no catálogo das plataformas, as quais devem reservar um percentual mínimo para obras produzidas por produtoras brasileiras. Isso deve ocorrer progressivamente, a depender do porte econômico de quem fornece o serviço: 2% do catálogo para empresas com receita até R$ 3,6 milhões/ano e 20% para empresas com receita superior a R$ 70 milhões/ano. Metade da cota deve ser composta por obras de produtoras brasileiras independentes, e microempresas e pequenas empresas optantes pelo Simples Nacional estão isentas da obrigação.
Outro ponto diz respeito ao destaque que deve ser dado a obras nacionais – ou seja, não basta estar no catálogo, é preciso ter visibilidade, o que tecnicamente se chama “proeminência”. O texto aprovado determina que as plataformas garantam esse destaque às produções brasileiras, cabendo à Ancine definir, por meio de regulamentação, os critérios e parâmetros para sua aplicação. Esse dispositivo introduz uma forma de regulação de catálogo que impacta diretamente modelos de negócios e políticas de curadoria das plataformas.
O terceiro, e talvez o mais relevante, altera a Medida Provisória n.º 2.228-1/2001, ao criar uma modalidade específica da Condecine para provedores de conteúdo audiovisual por demanda. Em outras palavras, eles se tornam contribuintes, o que mexe diretamente no bolso das plataformas. As alíquotas são progressivas e variam conforme a receita bruta anual: quanto maior o faturamento, maior a contribuição. O teto é de 4%, enquanto empresas com receita de até R$ 3,6 milhões ficam isentas.
Em outras palavras, eles se tornam contribuintes, o que mexe diretamente no bolso das plataformas.
Os recursos recolhidos são para alimentar o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), administrado pela Ancine, e têm destinação obrigatória de 30% para produtoras localizadas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O projeto também prevê um incentivo fiscal: as provedoras podem deduzir até 30% do valor devido se aplicarem diretamente em produção ou coprodução de obras audiovisuais brasileiras independentes.
Na Câmara, foram 327 votos a favor e 98 contra, com participação decisiva da base aliada do governo, que se comportou em bloco a favor do PL. A aprovação sugere uma articulação ampla, marcada pela disciplina dos partidos governistas e pelo apoio expressivo de legendas de centro, como MDB, PSD e PP, que garantiram margem confortável à proposta. Entre os partidos de oposição, o PL concentrou o maior número de votos contrários, embora tenha registrado dissidências relevantes - sobretudo de parlamentares do Nordeste, onde o setor audiovisual tem peso econômico crescente. O Novo foi o único partido com rejeição unânime, enquanto PSDB, Cidadania e União Brasil apresentaram votações divididas.
Do ponto de vista regional, a adesão foi majoritária nas bancadas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, contrastando com maior resistência no Sul e no Sudeste. O padrão territorial reforça a leitura de que a pauta mobilizou não apenas alinhamentos partidários, mas também interesses regionais ligados à produção e circulação de conteúdo audiovisual no país.
Por enquanto, só há duas certezas. A primeira é que o PL desagrada, em maior ou menor medida, os lados interessados no tema - como costuma ocorrer em pautas complexas. A Associação de Produtoras Independentes (API) comemorou a aprovação, mas ressaltou que ainda há muito o que avançar. Já a Strima, associação que representa plataformas em operação no Brasil, divulgou nota em que manifesta suas preocupações e discordâncias. A segunda certeza é que o debate promete continuar intenso no Senado, para onde segue agora o projeto.
No texto da próxima semana, trarei uma sistematização dos principais pontos defendidos pelos grupos de pressão que predominam nessa arena regulatória. Até lá.

*Juliano Domingues é presidente da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação), pesquisador CNPq e professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e da Universidade de Pernambuco (UPE).





