O pai de todas as batalhas

Ele cobriu o conflito do Golfo, do Vietnã, do Afeganistão, da Nicaragua, do Irã, da Bósnia. Peter Arnett, o maior dos correspondentes de Guerra, morre aos 91 anos

Atualizado em 18/12/2025 às 21:12, por Alexandra Itacarambi e Redação.

Capa com fundo azul de uma revista com um homem de meia-idade, branco, com terno preto e gravata vermelha. A manchete é

Capa da Revista IMPRENSA ed.121, de setembro de 1997


Peter Arnett, jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer e um dos correspondentes de guerra mais famosos do mundo, morreu na quarta-feira (17) aos 91 anos. Arnett, que lutava contra um câncer de próstata, deixou um legado inigualável que atravessou décadas, desde as selvas do Sudeste Asiático até os desertos do Oriente Médio. Nascido na Nova Zelândia em 1934 e naturalizado cidadão americano, Arnett iniciou sua trajetória em jornais locais antes de ganhar o mundo.

O jornalista esteve no Brasil em setembro de 1997, a convite de IMPRENSA para o Seminário Internacional de Telejornalismo, em Salvador.  

A seguir, leia alguns trechos da entrevista exclusiva concedida para a edição 121 da Revista IMPRENSA. O jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva conversou 50 minutos por telefone com Arnett, que estava na África do Sul, sobre carreira, suas convicções e aspectos sobre o jornalismo contemporâneo.


IMPRENSA – Se tivesse que definir o que é como profissional, que expressão você usaria: correspondente de guerra repórter, jornalista? Ou é tudo a mesma coisa?

Peter Arnett – Acho que é tudo a mesma coisa. Mas se eu tivesse que escolher um título, diria que eu sou um jornalista internacional. Eu sempre cobri guerras. Meu primeiro grande trabalho foi no Vietnã. Nos últimos 20 anos as guerras mudaram muito. Elas têm cada vez mais componentes políticos, econômicos e sociais que merecem a atenção do jornalista que as está cobrindo. Por exemplo, na América Central, onde eu trabalhei bastante na década de 80, o mais importante eram as questões sociais, o problema religioso, o deslocamento de refugiados. Não era só bangue-bangue. As matérias orientadas para as questões sociais eram fundamentais. A cobertura de guerra se mudou para outra área. Deixamos de ser correspondentes de guerra e passamos a cobrir todos os elementos do espectro da sociedade onde a guerra está ocorrendo. Foi assim na Bósnia. Hoje, é assim no Congo, é assim no Oriente Médio.

IMPRENSA – Mas no Vietnã a coisa já era assim?

No começo, não. No começo, era só o bangue-bangue que interessava. Nós cobríamos a guerra como se fosse um esporte: "Hoje ganhamos por tanto a tanto". Era como se fosse o resultado de um assalto de luta de boxe: "Estamos na frente”, “este assalto nós perdemos". Mas, depois, aos poucos, a coisa foi mudando de caráter. Havia ali um grupo de jovens repórteres, entre os quais eu, trabalhando para a Associated Press, que viam que as coisas no Vietnã eram diferentes dos press releases oficiais do Pentágono. Primeiro, nós vimos que o governo sul-vietnamita, financiado pelos EUA, era corrupto. Era dinheiro do contribuinte que sustentava aqueles governantes e nós achamos que isso era questionável. Depois, nós também colocamos em dúvida a eficácia das táticas militares usadas pelos EUA. Nós passamos a questionar tudo, até a validade do envolvimento norte-americano, no que era basicamente uma guerra civil.

IMPRENSA – No começo, você se sentia um pouco um soldado em ação?

Era muito tentador bancar o soldado. Nos meus primeiros anos no Vietnã, eu tinha de me lembrar, com frequência, que a minha função ali era cobrir fatos, não participar deles. Cheguei até a carregar um revólver comigo que eu vivia polindo. Nunca atirei em nada, a não ser em algumas latas de cerveja. No final, acabei perdendo o revólver na batalha de Khe Sanh, quando saí correndo sob um ataque de foguetes vietcongues, para entrar num helicóptero e escapar.

IMPRENSA – Vocês não tinham problema com censura?

Não. A Guerra do Vietnã foi a primeira guerra moderna da história do EUA em que se permitiu total liberdade aos jornalistas para cobrirem os fatos da maneira como eles os viam. A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais e a Guerra da Coréia foram cobertas por todos a partir do ponto de vista do governo dos EUA. O trabalho dos jornalistas era dar apoio à política externa do país. Por causa do momento político interno na década de 60, não houve nenhuma tentativa de se impor censura à imprensa no Vietnã.

IMPRENSA – Talvez porque nunca tenha havido uma declaração formal de guerra.

Talvez. De qualquer modo, essa ausência de constrangimentos nos permitia não só ter acesso, sem precedentes, ao campo de batalha, mas também discutir assuntos militares sensíveis de maneira rápida e sincera, em especial questões como o moral coletivo das tropas e da capacidade das unidades de se saírem bem nos combates. O fácil acesso à guerra e o desejo de muitos repórteres de aceitar o perigoso desafio de reportar a partir da linha de frente permitiu aos meios de comunicação questionar com autoridade as avaliações otimistas que partiam da Casa Branca e do Pentágono, mesmo quando o número de baixas norte-americanas crescia a casa das centenas de milhares.

IMPRENSA – Foram os meios de comunicação que acabaram com a participação dos EUA na Guerra do Vietnã?

As reportagens dos meios de comunicação deram energia ao movimento contra a guerra que emergia nos EUA. Os dois juntos convenceram os governos Johnson e Nixon de que havia chegado o momento de pôr fim ao envolvimento norte-americano. Mas, na minha opinião, o mais importante na Guerra do Vietnã foi a capacidade dos meios de comunicação e do público de ganhar acesso aos segredos da guerra e, com isso, ajudar a terminar com a longa e escura noite da desonestidade oficial. A Guerra do Vietnã foi a mais longa da história dos EUA. Ela poderia ter durado ad infinitum se uma imprensa vigilante e uma sociedade civil forte e dedicada não tivessem desativado a visão oficial da guerra. Quando falo de "segredos militares", não me refiro a planos de batalha. Eu me refiro aos segredos políticos, escondidos por burocratas em Washington, referentes à real avaliação que se fazia da questão vietnamita na Casa Branca durante cinco presidências, de Eisenhower a Ford.
 


IMPRENSA – Qual o papel da CNN no jornalismo contemporâneo? Muitos acham que ela pasteurizou o telejornalismo.

Acho que a CNN teve um impacto decisivo sobre a comunicação mundial. Governos ao redor do mundo assistem aos seus programas e estão sempre ansiosos para ver e ser vistos na CNN. Mas, é claro, ela é ainda uma rede de televisão por cabo a que pouca gente do grande público assiste. Nos EUA, sua audiência continua pequena. Mas em momentos de crise, é para a CNN que todos se voltam. Eu tenho orgulho de fazer parte dessa equipe.

IMPRENSA – Por que a CNN não consegue manter esse espetadores que a sintonizam em situações de crise? Por que eles a abandonam dias depois?

Essa é a grande questão que os dirigentes da CNN tentam responder há anos. Se você tiver a resposta, por favor, nos dê, porque ela será muito apreciada. Eu acho que o fenômeno faz parte da natureza da notícia. Num dia sem assuntos sensacionais, não há uma boa razão para o cidadão comum assistir à CNN. Mas a CNN, não deixa de ter um grande impacto permanente porque ela é sempre assistida pelos formadores de opinião, pelos líderes do mundo inteiro, em todos os países. Ela não deixa de fazer muito dinheiro porque os anunciantes sabem que ela atinge um mercado especializado e altamente influente. Talvez a CNN nunca venha a ter uma audiência de massa, mas nem por isso deixará de ter o papel relevante que tem hoje em dia.

IMPRENSA – Como você avalia a sua participação na CNN?

Eu entrei para a CNN em 1981. Fui um de seus primeiros correspondentes internacionais. Hoje eu me considero parte do time. Cobri as mais importantes crises internacionais desse período. Tenho tentado desenvolver minhas próprias áreas de interesse e a CNN me deu toda a liberdade de que eu preciso. Ultimamente, por exemplo, tenho me dedicado à África porque acho que ela terá um papel relevante no panorama internacional e tenho podido vir, com as melhores condições possíveis, sempre que precisei. Tenho orgulho de ser um porta-voz da CNN e sempre estou disposto a falar em sua defesa. Ela me deu proeminência e reconhecimento mundiais, que me tem aberto quase todas as portas. Nem sempre dá certo, é claro. Na semana passada, por exemplo, nem com todo o prestígio da CNN, eu consegui falar com Jonas Savimbi, o líder da Unita, o grupo de oposição ao governo em Angola, que eu queria tanto ter entrevistado para uma série de reportagens sobre esse país.

IMPRENSA – Como foi a sua passagem do jornalismo impresso para o telejornalismo?

Não foi nada fácil. Fiquei 20 anos com a Associated Press. Mudei-me para a CNN porque vários amigos meus correspondentes de televisão estavam indo para lá também e porque eu fiquei intrigado com o projeto da CNN, um canal com notícias 24 horas por dia e presença em todos os países do mundo. Tinha a impressão de que a TV era o futuro do jornalismo. Mantenho meu absoluto respeito pelos jornais e revistas de qualidade. Mas acho que a TV é o veículo para a sociedade acompanhar as grandes crises por causa do seu imediatismo e da importância das imagens. Minha transição foi muito difícil. Levei alguns anos para aprender que na TV é vital ser direto, conciso e trabalhar para a imagem. No jornalismo impresso, é possível se estender muito mais, não ligar para a imagem. Mas acho que finalmente me adaptei bem.

IMPRENSA – Você não acha que a Internet poderá vir a exercer o papel atual da TV nas próximas décadas?

Não. Eu acho que a Internet vai ser parte do fluxo da informação, não vai ter um papel decisivo, será parte importante do fluxo, mas não vai controlá-lo. Acho que muito em breve ela estará nas telas de TV junto com o cabo e vai ser usada como acessório. Não vai substituir nem a TV nem o jornal.

IMPRENSA – Quando e por que você resolveu ser jornalista?

Nasci na Nova Zelândia e desde muito cedo me apaixonei pelo rádio. Meu irmão mais velho se empregou no jornal da minha cidade quando terminou o colegial e eu segui o mesmo roteiro. Comecei a trabalhar no The Southland Times em 1951, aos 18 anos. Primeiro, cobri esportes, depois política. Depois fui para a Austrália e para o Vietnã, com a Associated Press.

IMPRENSA – Qual foi o seu melhor momento na profissão?

Acho que tive vários, em especial nas 18 guerras que eu já cobri. Acho que o melhor momento é aquele em que você consegue fazer uma grande reportagem, uma entrevista soberba. Sempre que isso acontece, eu fico excitado. Por exemplo, a queda de Mobutu e a ascensão de Kabila neste ano (1997) no Congo. É a história sendo feita e eu sendo capaz de não apenas testemunhá-la, como contá-la para o mundo. Estar presente num grande momento histórico é muito excitante. A queda de Saigon é outro exemplo. Não era só o fim da guerra com os EUA que eu estava testemunhando; era o fim do colonialismo no sudeste asiático, e eu fui capaz de comunicar ao mundo essa transição histórica dramática. Ou a Guerra do Golfo. Eu, no nono andar do hotel Al-Rashid, assistindo e relatando o bombardeio de Bagdá. Todos esses e outros foram grandes momentos. 
 

Mas o que me importa é olhar para a frente e saber que a matéria de amanhã poderá ser o meu melhor momento. A próxima missão é que tem que ser o melhor momento.

Peter Arnett

IMPRENSA – E agora ia perguntar a você se o provável sacrifício em sua vida pessoal e familiar ao longo desses 44 anos valeu a pena? Mas seu entusiasmo já parece ter respondido que sim.
Sabe, esta resposta não é tão fácil quanto eu possa ter dado a impressão que é. O que eu acredito é que na nossa profissão a responsabilidade que temos com a audiência é enorme. Tenho certeza que uma imprensa livre e responsável é um dos pilares da democracia. Por isso tenho que me dedicar ao máximo para fazer tudo que possa de modo a garantir que exista esta imprensa. 
Eu não tive a clássica vida familiar feliz como é concebida nos EUA: casa confortável, dois carros na garagem, churrasco aos domingos, fim de semana com as crianças e os cachorros. Mas minha carreira também não destruiu ninguém na família. Não foi por causa dela que o meu casamento acabou.
Meus dois filhos, Andrew e Elsa, estão criados e se dão bem comigo. Andrew tem 32 anos e toca em uma banda de rock, e Elsa, 30 anos, é jornalista.

IMPRENSA – Você teve alguma coisa a ver com a escolha de sua filha?
Eu não a empurrei para o jornalismo. Ela estudou em Harvard e poderia ter escolhido qualquer carreira que quisesse. Mas sempre a apoiei na sua decisão de fazer jornalismo e ela é muito boa no que faz. Trabalha na redação de Washington da cadeia de jornais Knight-Ridder.

IMPRENSA – Você já esteve no Brasil?
Sim, algumas vezes. A primeira, para cobrir a exumação do corpo de Joseph Mengele. Depois, estive outras vezes no Rio e em São Paulo, uma delas para lançar a edição brasileira de minha autobiografia. Estou muito animado com essa nova viagem, a Salvador, para participar desse encontro sobre telejornalismo.

IMPRENSA – Seu livro é um sucesso. Você pretende escrever outros?
“Live from the Battlefield” já vendeu mais de 350 mil cópias e foi editado em 13 línguas, inclusive o chinês, o japonês, o hebraico e o turco. Não sei por que tanta gente se interessa pela minha vida. Mas, de qualquer modo, é muito reconfortante receber o número de respostas que eu tenho recebido a alguma coisa escrita por mim. Eu tenho vontade de escrever outros livros. O problema é encontrar tempo, porque o que eu quero mesmo, de verdade, é continuar a reportar notícias. ◼