Quando saiu o número 1217 do Charlie Hebdo, no dia 18 de novembro de 2015, Paris ainda chorava as vítimas dos atentados terroristas no dia 13. Naquela sexta-feira, 130 pessoas foram mortas por atiradores e centenas de outras ficaram feridas. Na capa, o desenho de um parisiense dançando e tomando champanhe, com a bebida escorrendo pelos buracos de balas no corpo. “Eles têm as armas. Eles que se f****. Nós temos o champanhe”, escreveu o jornal.
Dias antes, o semanário emitiu um comunicado condenando a violência do Estado Islâmico (EI) na França. “Toda equipe do Charlie Hebdo compartilha de seu terror e revolta [...] Charlie se solidariza com a dor das vítimas e expressa seu apoio a suas famílias [...] Condenamos mais uma vez essa violência terrorista a serviço da ideologia totalitária islamita, que não quer outra coisa a não ser destruir os valores da democracia e da República”, dizia o jornal. E ele entendia cada palavra.
Em 7 de janeiro, sua redação foi atacada por dois homens armados, que invadiram a reunião de pauta e mataram 12 pessoas, entre elas cinco de seus artistas – Stéphane Charbonnier (Charb), Jean Cabut (Cabu), Philippe “Honoré”,Bernard Verlhac (Tignous) e Georges “Wolinski”. Na capa pós-atentado, o cartunistaRenald Luzier (Luz) desenhou o profeta Maomé chorando e segurando a mensagem “Je Suis Charlie” (Eu sou Charlie, em livre tradução), sob os dizeres “Tudo será perdoado”.
Por esses motivos havia quem duvidasse que o jornal manteria a linha editorial com os atentados recentes. No entanto, pelas mesmas razões, havia também quem acreditasse que não apenas manteria, como testaria limites. “O
Charlie funciona como uma criança birrenta. Posso falar o que quiser, do jeito que quiser e você que se vire. A decisão é do outro de comprar ou não, a divisão fica clara”, diz o artista gráfico e ilustrador Orlando Pedroso, membro do conselho da Sociedade dos Ilustradores do Brasil (SIB).
O cartunista Carlos Latuff, uma das vozes mais críticas ao Charlie por avaliar que sua “estratégia de marketing” é ofender seletivamente, não acreditou que riria do massacre. “O jornal fez piada com a queda de um avião russo que matou 224 passageiros e a tripulação, mas duvido que faça chacota do atentado em Paris”, disse dias antes da capa. Já David Gormezano, jornalista da France24, afirmou que a capa satírica era esperada. “Isso é o Charlie. É fazer humor de tudo, sem limite, macabro, sujo. Você gosta ou não, mas o jornal sempre foi assim”, resumiu.
DEPOIS DO FIM
Criado em 1970, o Charlie sempre se apoiou na liberdade de expressão e de imprensa para fazer o seu trabalho, doa a quem doer, praticamente encarnando a liberdade. Em setembro, o jornal se valeu disso e acabou bastante criticado por charges sobre a crise dos refugiados que buscam na Europa uma saída para a guerra. Em uma das imagens, o menino sírio Aylan Kurdi, encontrado afogado em uma praia turca, aparecia diante de um anúncio da rede de fast food McDonald’s e os dizeres “dois menus de criança pelo preço de um” e “tão perto da meta”. Em outra, a criança foi desenhada junto às mensagens “a prova de que a Europa é cristã” e “os cristãos andam na água e crianças muçulmanas afundam”.
Pedroso não ficou chocado. “Achei uma charge correta. As pessoas ficam emocionadas com uma criança.
Ali é uma situação real, estão morrendo na praia”, diz. Mesmo lembrando a importância “quase cultural” do Charlie, por justamente satirizar tudo, Claire Gatinois, correspondente no Brasil do jornal Le Monde, discorda do colega. “O jornal parece um pouco perdido. Não sabe mais onde fica a linha vermelha.”
Apesar dele continuar zombando de tudo e de todos, após os ataques de janeiro, profissionais da imprensa perceberam algumas mudanças. “Eles fizeram de tudo para manter a linha editorial, mas as principais estrelas foram mortas no atentado. E eles há muitos anos eram amigos, que trocavam ideias e acreditavam realmente naquilo que faziam”, diz
Sônia Blota, correspondente da Band na Europa. “Sem as personalidades mais emblemáticas, o espírito do jornal foi embora”, ressalta Claire. A preocupação com a segurança da família e o possível sentimento de culpa pelo recente massacre também pesam para a equipe, segundo Pedroso. “Vale a pena fazer isso e a família sofrer as consequências? Se eu estiver em um lugar com amigos e entrar um extremista e matar todos? Já não é mais espontâneo. Por outro lado, pensar duas vezes não é coisa ruim. No caso da França, as linhas e fronteiras são tênues. Outra coisa é o quanto eles podem se sentir responsáveis por esse ataque”, diz.
PRÓXIMA PÁGINA
Mas essas não foram as únicas mudanças no Charlie nesse quase um ano. Em abril, Luz decidiu não desenhar mais Maomé e sair do jornal. “Finalizar cada edição era uma tortura porque os outros não estavam mais aqui. Passar noites sem dormir desenterrando os mortos, pensando o que [os colegas vítimas] fariam no meu lugar, se tornou exaustivo”, disse à época. Em julho, Laurent “Riss” Sourisseau, que substituiu Charb, informou que o periódico deixaria de publicar caricaturas do líder religioso.
Outros problemas internos têm como pano de fundo o dinheiro recebido após o atentado. De trinta mil exemplares por mês, o jornal passou para 180 mil assinantes e cem mil exemplares em bancas. Parte da imprensa disse que o crescimento e as doações somaram trinta milhões de euros, enquanto o jornal disse 12 milhões, dos quais parte iria para as famílias das vítimas. Com as ações da empresa entre os pais de Charb (40%), Riss (40%) e o diretor financeiro Eric Portheault (20%), eles se comprometeram a não receber dividendos das quantias, e mencionaram uma futura “abertura de capital”.
Antes da decisão, um grupo de 15 funcionários questionou o destino dos recursos e a transparência da gestão e pediu a criação de um estatuto de “acionistas assalariados”. Ainda no primeiro semestre, a repórter Zineb El Rhazoui foi demitida, segundo o jornal, por causa de suas “ausências”; segundo ela, por ter se juntado ao protesto. E no livro “Maudites” (“Malditos”, em livre tradução), Jeannette Bougrab, companheira de Charb, chamou Luz de “medíocre e usurpador” por parar de retratar Maomé.
Enquanto as polêmicas seguiram, o jornal mudou para uma nova sede, com segurança reforçada, depois de oito meses na redação do Libération, que o acolhia desde o ataque. O site foi repaginado com seções traduzidas para o inglês para “atingir leitores internacionais e permitir que o maior número possível conheça melhor o Charlie Hebdo”, segundo nota. Para Gormezano, isso deve atrair um público em inglês e em outros idiomas, que olha para o semanário “como símbolo da liberdade, resistência”.
Há quatro anos em Paris e apesar de não ser fã do Charlie, Sônia vê coerência no que o jornal faz por conhecer sua origem, pela França ser o país da liberdade de expressão e ter o jornalismo opinativo como o mais importante. “Em termos de democracia, nunca vi nada igual. A imprensa aqui é altamente opinativa. Não é que interfira no pensamento das pessoas, mas que te faça pensar.”
Ressaltando o caráter provocativo e de testar limites do Charlie, Gormezano acredita que a equipe quer fazer o mesmo jornal de antes dos atentados e os ataques recentes reforçaram esse sentimento. “Eles estão traumatizados. Mas as ideias, a postura e o projeto jornalístico, não.”