O gene jornalístico que Matheus Leitão herdou dos pais não veio apenas com a curiosidade de um repórter. Filho de Miriam Leitão e Marcelo Amorim, figuras conhecidas em grandes redações do país, ele também tem um interesse pela luta deles contra a ditadura militar brasileira. Isso porque seus pais, por terem sido militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), no início da década de 1970, foram delatados por um companheiro de luta e acabaram presos.
Tal história fisgou Matheus “como um peixe que morde uma isca, mas não consegue livrar-se de um anzol bem enfiado”. O caso permaneceu com ele por quase três décadas, até a publicação da matéria “A espera”, que pode ser lida na plataforma digital Brio. Na reportagem, o jornalista coloca na balança o interesse pessoal em confrontar o delator dos pais e a importância histórica do relato desse homem.
Acontece que na mesma noite em que Foedes dos Santos entregou o casal Leitão-Amorim às autoridades, ele também delatou figuras importantes do PCdoB. Lincoln Cordeiro Oest e Carlos Nicolau Danielli foram nomes lendários na luta contra a ditadura e suas prisões – e subsequentes mortes – teriam efeitos diretos na Guerrilha do Araguaia, enfraquecendo ainda mais a luta de oposição no local.
“Nos arquivos do Superior Tribunal Militar eu encontrei o depoimento do Foedes falando que tinha um ponto com ele e entregando esse ponto [no caso, o militante Oest] para a repressão. Então, eu sabia da importância histórica da documentação. Misturado a esse molho havia uma pitada dos meus sentimentos pessoais, que eclodiam, além do fato de eu estar diante da pessoa que gerou sofrimento aos meus familiares”, explica Leitão. Do encontro dessa documentação até a publicação da matéria se passaram 11 anos.
Jornalista personagem
Parte dos documentos foi repassada a historiadores e antigos chefes de redação, tornando Leitão colaborador de importantes obras sobre a ditadura brasileira – como o livro “Operação Araguaia”, dos jornalistas Eumano Silva e Taís Morais. Por ser filho de pessoas delatadas, ele explica que, em meados dos anos 2000, se sentia impedido de escrever sobre o caso. “Fui estudar em Berkeley [faculdade de jornalismo na Califórnia] e lá eu aprendi sobre novas formas de jornalismo. Uma delas foi o self journalism, que é essa coisa do jornalista que escreve a reportagem, de certa forma, ser o personagem.
Isso me abriu as portas para que eu pudesse escrever a matéria. Encaixou como uma luva.” Já munido de uma base teórica para escrever a reportagem, o desafio passou a ser, então, encontrar documentos dentro do Exército. Essa busca é muito recordada na reportagem por ter sido realizada antes da Lei de Acesso à Informação. Leitão dependia da boa vontade dos órgãos militares. “Era mais difícil ter acesso aos documentos. Muitas informações foram negadas, até que um dia eu tive autorização para ter acesso ao processo deles [seus pais]. Mas era assim: você pode ver, mas não pode tirar cópia”, recorda.
No âmbito familiar, a dificuldade não era menor. Havia uma barreira pessoal dos pais. “Não é que eles não queriam falar. Era mais uma questão que a vida tinha dado. Eu via que não era um segredo. Era uma reserva, um assunto difícil para falar quando eu era adolescente, por exemplo. Foi difícil, sim, em alguns momentos.”
Lado a lado. Cara a cara
Um elemento de fora da família chegou para auxiliar na realização de “A espera”: o cineasta Eduardo Gomes. Designado pela plataforma Brio para gravar e auxiliar na composição da reportagem, é dele a autoria dos vídeos que complementam a narrativa. Os dois não se conheciam e o encontro fez parte do repertório de coincidências que permeou a produção da reportagem. O cinegrafista também é filho de jornalistas e os pais de ambos já se cruzaram redações afora. Mas eles só descobriram isso na viagem para o Espírito Santo, onde encontraram Foedes dos Santos.
Foi num sítio isolado próximo à capital capixaba onde Matheus Leitão encontrou o homem que há 42 anos entregou seus pais à repressão.
O momento é emocionante, não apenas para o leitor. “Dois momentos na entrevista me emocionaram muito: quando perguntei se ele tinha delatado meus pais e também na hora em que conversamos sobre o Carlos Danielli.” Leitão introduz a entrevista da seguinte maneira em sua matéria: “A entrevista (ou conversa, ou acerto de contas) começava”. Questionado pela reportagem sobre qual dos termos ele escolheria para descrever o ocorrido agora, após a matéria publicada, ele respondeu seguido de um longo silêncio: “... eu acredito que foram os três”.