O debate entre o historiador Carlos Fico e o jornalista Eugênio Bucci, mediado pela jornalista Flávia Marreiro, da BBC Brasil, em virtude dos 40 anos de democracia, na abertura da Feira do Livro neste sábado (dia 14), foi propositivo no sentido de atentar que a democracia precisa ser celebrada e de sugerir ações que podem fazer diferença na consolidação da democracia brasileira.
Historicamente, golpes e intervenções militares no Brasil foram seguidos de anistias, mesmo contra a vontade da sociedade, como nos episódios de 1955, descrito pelo professor de história do Brasil da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Carlos Fico, como “um golpe muito doido”.
Fico defende a necessidade de alteração no artigo 142 da Constituição Federal, que confere uma competência excessiva e imprecisa aos militares para garantir os poderes constitucionais. A ambiguidade da expressão "garantia dos poderes constitucionais" tem sido mal interpretada pelos militares, gerando insegurança institucional, muito embora o Supremo Tribunal Federal e o Congresso já tenham declarado que o artigo 142 não é autorização para golpes, isso não basta. “Eu acho que a medida essencial seria a mudança reescrita do atual artigo 142, na passagem em que ele atribui essa competência excessiva de garantia dos poderes constitucionais. Ninguém sabe o que é isso. O que é a garantia dos poderes constitucionais?”, questiona Fico. Segundo ele, a interpretação equivocada dos militares mantém o problema vigente.
Já Eugenio Bucci, professor da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), acrescenta um ponto importante, o de repensar, com o maior respeito, pelo caminho mais inclusivo, a formação dos jovens militares no Brasil, que é uma das 29 sugestões da Comissão Nacional da Verdade (2014).
“A polícia militar não tem inimigo. A polícia trabalha numa sociedade, não para combater inimigos, para proteger cidadãos. Ela não tem ninguém que deva matar. A construção desse tipo de imaginário, no entanto, é um problema grave. Para nós termos uma democracia sólida, que cresça, que acolha, que seja um ambiente de inspiração, de segurança, de progresso, sem dúvida nenhuma, será necessário que a gente como sociedade reexamine essa matéria. A formação dos militares não é um assunto dos militares, é um assunto da sociedade”, diz Bucci.
Crédito: Alexandra Itacarambi
Golpe em gerúndio
O risco de novas rupturas no país está enraizado naquilo que Fico define como a “utopia autoritária brasileira” — título de seu novo livro. Fico explana o conceito, considerando que boa parte dos militares veem os civis como despreparados, como ignorantes, visão que, evidentemente, não é apenas exclusiva dos militares. E relaciona com o momento atual, em que os acusados pela mais recente tentativa de golpe de Estado são julgados: “se houver a condenação de militares, quase que obrigatoriamente o procurador militar vai levar essas condenações do Supremo Tribunal Federal para a justiça militar, que é o julgamento de honra, da incapacidade e inadaptabilidade para o posto e para a patente. Podem perder o posto e a patente, que é uma coisa muito desonrosa.”
Ao falar de seu novo livro “Que Não Se Repita - A Quase Morte da Democracia Brasileira”, Bucci explica que é um relato com as várias agressões retóricas e materiais contra a democracia no Brasil do governo Bolsonaro, atacando o jornalismo e de preferência as mulheres. “Essa síndrome fez esse tipo de ataque contra jornalistas mulheres, atacou a universidade, a ciência, a justiça, quis destruir a respeitabilidade das urnas eletrônicas, fez de tudo. Nesse livro, eu conto que o que tivemos entre 2019 e 2022 foi um golpe em gerúndio. Ele foi tentado todos os dias e nós não estamos livres disso ainda.”
Ambos concordam com a importância de não esquecer de que a democracia não é algo dado ou um futuro certo, e sim um trabalho árduo e constante de muitos.
Celebrar para fortalecer
O historiador Carlos Fico aponta a importância da Emenda Constitucional n.º 25, de maio de 1985, que estende o direito de voto a analfabetos, criando uma verdadeira democracia de massas após anos de exclusão. “Então, nós estamos celebrando não apenas o fim da ditadura, mas a criação de uma verdadeira democracia de massas que finalmente, após anos e anos, como eu falei, desde 1881, eram excluídos do processo.” A jornalista Flávia Marreiro, da BBC Brasil, questiona se este seria um marco, como Revolução dos Cravos, um dia bonito que as pessoas saem às ruas em Portugal para relembrar a volta da democracia.
Na opinião do professor da ECA-USP, essa data é o dia 25 de outubro. “E este ano, agora, o Instituto Vladimir Herzog, do qual eu também participo, conduz a organização do 25 de outubro na Catedral da Sé, onde em 1975 foi realizado o ato em repúdio ao assassinato e de proteção da memória de Vladimir Herzog. Esse é o dia da democracia”, defende Bucci.
Serviço:
A quarta edição d’A Feira do Livro 2025 acontece de 14 a 22 de junho, na praça Charles Miller, no Pacaembu. Realizado pela Associação Quatro Cinco Um, pela Maré Produções e pelo Ministério da Cultura, gratuitamente.
A razão desumana: Cultura e informação na era da desinformação inculta", de Eugênio Bucci, pela Editora Autêntica, 161p.
"Que não se repita: A quase morte da democracia brasileira", de Eugênio Bucci, pela Editora Seja Breve, 192p.
"Utopia autoritária brasileira: como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje", de Carlos Fico, pela Editora Crítica, 448p.
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