O seu chefe está morto!

Perfil: Parte 2

Isis Brum* | 16/08/2024 09:44

Durante a ditadura, Sinval de Itacarambi Leão foi preso no fatídico dia da emboscada de Marighella

Do ponto de vista meramente factual, Sinval foi preso por sua amizade com os frades dominicanos, que conheceu durante a Faculdade de Filosofia, pois assegura nunca ter sido membro efetivo da ALN (Ação Libertadora Nacional).


Ainda mais progressistas que os beneditinos, os religiosos da Ordem de São Domingos também eram formados sob uma base filosófica e intelectual tão rica quanto a teológica. Desobrigados da vida em clausura, ao contrário da maioria das ordens monásticas, os dominicanos podiam ingressar no ensino superior e muitos deles cursaram a USP (Universidade de São Paulo). Também podiam trabalhar fora dos muros do convento que, em São Paulo, ficava no bairro das Perdizes, na zona oeste da capital.


Essa vivência lhes permitiu participar do debate político à medida que se tornava cada vez mais comum a criação de grupos da JEC (Juventude Estudantil Católica). Posteriormente, os dominicanos fundaram a Ação Popular, que atuou na clandestinidade, ajudando membros da militância a fugir ou a se esconder, entre os quais, os filiados à ALN. 


A religião e a política desaguavam no mesmo oceano de propósitos, aonde os alcunhados cristãos socialistas foram se banhar. Sob essa perspectiva, Jesus era abordado e admirado em sua obra social e revolucionária, para além dos dogmas do catolicismo oficial realizzato in Vaticano. Como irá repetir Frei Betto, inúmeras vezes, em artigos e entrevistas pós-ditadura, Cristo foi perseguido, censurado, torturado e morto em um processo político por desafiar o Império Romano e, mais ainda, a conduta imoral dos fariseus, as autoridades religiosas das quais Cristo discordava, que exploravam tanto quanto os “filhos de César” o povo pobre, doente e analfabeto. Os frades se reconheciam nesse Jesus caridoso e insurgente e procuravam se inspirar em seus passos até que um deles esbarrou com o de Marighella.


Não bastasse o histórico dos amigos com os quais convivia, a editora Vozes, onde Sinval trabalhava há um ano, se posicionou contra a ditadura militar e publicou corajosamente obras importantes nos anos de repressão.


Com esse histórico, os militares estavam certos da conexão do jornalista com a militância armada.


Sinval não conheceu Carlos Marighella pessoalmente, embora soubesse quem ele era. Para a esquerda, um líder revolucionário admirável. Para o Estado, terrorista e inimigo número 1 do regime, sobretudo, depois do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick orquestrado ente os membros da ALN e do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro).


O grupo conseguiu o que queria: trocar Elbrick pela libertação de 15 presos políticos e a leitura em rede nacional do manifesto revolucionário escrito por Marighella. A partir do dia em que o diplomata foi solto, a caçada implacável à militância iniciou-se.


A caçada


Há muita literatura sobre este período, desde “O que é isso, companheiro?”, de Fernando Gabeira, “Batismo de Sangue: guerrilha e morte de Carlos Marighella”, de Frei Betto, a “Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo”, de Mario Magalhães. Sem contar os documentários, estudos científicos, as reportagens investigativas e todo trabalho da Comissão da Verdade.


Nesses registros históricos, é possível encontrar detalhes e perspectivas esclarecedoras (outras nem tanto assim) que confrontam as versões oficiais produzidas pelos militares durante os anos de ditadura.


O envolvimento de Sinval com o episódio, conforme o relatário do Dops, começa a partir da prisão de alguns membros da ALN e da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), como Paulo de Tarso Venceslau, em  de outubro de 1969, e Izaías do Vale Almada, detido há mais tempo. Todos submetidos a dias consecutivos de intensa tortura. Participante do sequestro do diplomata americano, Venceslau conta à Folha de SP, em junho de 1998, que tinha um telefone do Convento dos Dominicanos anotado no talão de cheques e para não entregar os dominicanos, falou que o contato era o Frei Oswaldo Resende que estava na França.


Pelos depoimentos, agentes infiltrados e escutas telefônicas, o departamento obteve os nomes de Yves do Amaral Lesbaupin, o Frei Yves, e de Fernando de Brito, o Frei Fernando, além de Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, que mantinha contato regular com Marighella.


Crédito: Arquivo Pessoal
Julgamento dos réus acusados de subversão do grupo de Carlos Marighella. Sinval, que estava implicado no processo, foi absolvido. Publicado no Jornal Diário Popular (hoje Diário de SP) em 15/09/1971


Ainda segundo o relatório do Dops sobre a operação, entregue incompleto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, os militares concluíram que era “evidente o comprometimento desses clérigos com o movimento subversivo liderado por Carlos Marighella para a tomada do poder, por meio violento, através da luta armada”. O Convento dos Dominicanos foi considerado uma base operacional de Carlos Marighella e posto sob vigilância ininterrupta até ser invadido no dia 3 de novembro de 1969.


Foi então que os militares armaram um encontro entre Marighella e os freis Yves e Fernando, como conta a história. Segundo a entrevista publicada em 1996, Lesbaupin afirma “não fomos só nós os utilizados para pegá-lo. Teve algo mais.”


Diga-me com quem andas


Ainda monge, Sinval decidiu cursar Filosofia no Instituto de Filosofia e Teologia da Faculdade Sapientiae, onde estudou de 1965 a 1967. No ?ltimo ano, conheceu os frades Tito de Alencar Lima, Carlos Alberto Libânio Christo, Magno Vilela, Luiz Felipe Ratton e Yves do Amaral Lesbaupin, de quem se tornou mais próximo.


Com eles, travou conversas sobre política, tornou-se um cristão socialista e foi convidado a fazer parte da ALN por Lesbaupin. Em julho de 1969, durante sua passagem pelo Rio de Janeiro, Frei Yves e Sinval encontraram-se pessoalmente e o frade lhe disse que sua função estaria relacionada com o setor de imprensa da organização e seria necessário esperar algum tempo, porque o órgão não estava estruturado na capital carioca. Os frades integravam a Editora Duas Cidades em São Paulo e tinham o objetivo de expandir a oposição ao regime militar para o Rio de Janeiro, o que seria feito pela Vozes por Sinval.


O novo contato ocorreu em fins de outubro, quando conversaram por telefone e o amigo Yves comunicou sua ida ao Rio no dia 2 de novembro, sendo preso assim que desembarcou. O momento era bastante tenso e chegou a orientar os companheiros do convento a procurarem por ele se desaparecesse. 


Os frades militantes sabiam que o contato no Rio era Sinval. Ao ser informado do sumiço do amigo, o jornalista contou que passou a procurá-lo, no entanto, acabou preso no dia 4, dois dias depois pela Oban no Rio, enquanto Frei Tito era preso em São Paulo. Era o fatídico dia da emboscada de Marighella. 


Crédito: Arquivo Pessoal
Capa editada por Sinval e Rogério Duarte, editor de arte, sobre a matéria "Hora e vez do descompasso" em abril 1969


O seu chefe está morto! 


Há 11 anos sem ganhar do Santos, o Corinthians tinha dominado o jogo. Não muito longe do estúdio, cerca de 40 policiais, sob o comando do delegado Fleury, foram designados para a Alameda Casa Branca, altura do número 806, onde Marighella se encontraria com os freis Yves e Fernando.


No intervalo do jogo, o locutor anunciou: - Foi morto pela polícia o terrorista Carlos Marighella. O estádio gritou eufórico pela notícia. Na delegacia, os  policiais comemoravam o sucesso da operação:

- O seu chefe está morto! O seu chefe está morto!


Sinval não se lembra de ir para a sala de tortura naquela noite e, sim, dois ou três dias depois. A partir do momento em que foi levado para a primeira sessão, foi submetido vezes seguidas ao pau de arara, eletrochoque em todas as partes do corpo, a espancamentos com mangueira de borracha, aplicação de telefone (tapas simultâneos nos dois ouvidos) e afogamentos.


As sessões foram comandadas pelo delegado Fleury, considerado um dos policiais mais cruéis do regime de exceção e o chefe do Esquadrão da Morte em São Paulo. Exigia de Sinval uma lista de pessoas envolvidas na organização e a confissão de sua participação no “grupo terrorista”. 


O jovem de 26 anos insistia em sua inocência e alegava que fora preso antes de realizar qualquer tarefa. Questionado pelo delegado se faria algo que Marighella lhe pedisse, ouviu “Sim, eu faria”, como resposta. Neste dia, foi intensamente espancado.


O seu depoimento foi registrado em dia 21 de novembro. Sinval acredita que os torturadores acabaram se convencendo de que ele não tinha ligação com a militância. No mês seguinte, foi transferido para o Presídio Tiradentes, usado como prisão política desde a Era Vargas.


© Imprensa Editorial

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*A jornalista Isis Brum entrevistou o Sinval de Itacarambi Leão entre novembro e dezembro de 2023. O texto teve a colaboração e edição de Alexandra Itacarambi.


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