Em Salvador, Gilvan Ribeiro lança obra de ficção com estudo histórico sobre a Revolta dos Malês

Alexandra Itacarambi | 31/10/2023 08:11

O jornalista Gilvan Ribeiro, autor da biografia de Walter Casagrande, realiza uma sessão de autógrafos no lançamento do livro “Malês: A revolta dos escravizados na Bahia e seu legado”, publicado pela Editora Planeta (336p. R$ 86,90). O evento acontecerá na segunda-feira, dia 06 de novembro, na Casa do Olodum no Pelourinho com início às 18h30, aberto ao público. E dia 13 de novembro às 19h, será na Livraria da Vila, em São Paulo, com a presença do professor da UNESP e ativista antirracista,  Juarez Xavier, que se encarregou do prefácio.


Na obra, o autor best-seller resgata uma das principais revoltas brasileiras e o legado que ela deixou para a luta da população negra no Brasil, através de pesquisa nos acervos do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). A narrativa retrata a saga dos africanos muçulmanos letrados em árabe que se rebelaram contra a dominação de senhores brancos. Analfabetos em sua grande maioria, o autor ressalta a sofisticação intelectual desses escravizados.


O sociólogo Muniz Sodré, responsável pela orelha da obra, diz que "o autor empreende um trabalho inovador, que dribla o lugar institucional da disciplina histórica, tão convicta de si mesma na academia, mas frequentemente tão tediosa na mediação que faz entre o passado e o presente, às vezes empalhando os fatos como se fossem passarinhos. O que faz Gilvan Ribeiro? Traz o passado para a oratura, de forma encantatória, sem empalhá-lo.”


Assim como outros livros que abordam fatos reais e históricos, o trabalho de pesquisa oral e documental e o processo de análise, envolveu diversos profissionais. Ribeiro destaca o apoio que teve de intelectuais negros como Jurema Werneck, Luana Tolentino, Átila Roque, Gabriel Sampaio, Raimundo Bujão e Zulu Araújo para estabelecer as conexões com o presente. 

Crédito:Divulgação


Na entrevista a seguir, realizada por email, Gilvan Ribeiro discorre sobre o processo que percorreu para chegar na publicação e dá “spoiler” sobre um dos capítulos relacionados ao jornalista e advogado abolicionista Luiz Gama.


IMPRENSA: O que te motivou a escolher este tema?


A principal motivação foi ter descoberto a Revolta dos Malês tardiamente, pois as aulas de história na formação escolar haviam me sonegado essa informação. Só tomei ciência da existência desse fato tão importante para a luta do povo negro há cerca de quatro anos, ao ler “Um defeito de cor”, da Ana Maria Gonçalves, que aborda o levante em um dos capítulos. Embora seja uma obra de ficção, ela insere a protagonista nesse contexto histórico com bastante embasamento, o que me levou a procurar outras leituras a esse respeito. A sofisticação intelectual dos africanos muçulmanos letrados em árabe, majoritariamente nagôs, que se rebelaram contra senhores analfabetos em sua grande maioria – como era a sociedade brasileira na época –, me deixou impressionado. Assim como o fato de uma ordinária briga de casal ter mudado o rumo dos acontecimentos e determinado o desfecho da insurreição. Como contador de histórias que sou, fiquei motivado a compartilhá-la com um maior número de pessoas a partir de uma narrativa vibrante, com técnicas do chamado jornalismo literário, para recriar cenas, diálogos e até sentimentos dos principais participantes da rebelião. Toda essa reconstrução se dá com base nos depoimentos que os presos deram durante a devassa, o processo policial e judiciário que se encontra preservado nos acervos do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB).


IMPRENSA: Como foi o processo de pesquisa da documentação sobre o tema e quanto tempo demorou?


Assim como ocorreu com muitos escritores, o meu trabalho foi atravessado pela pandemia, com atraso de um ano e meio para o início das pesquisas de campo e as consultas aos documentos originais no APEB. A começar pela impossibilidade de pegar um voo para Salvador, no auge das mortes por Covid-19, além do fechamento dos arquivos para consultas presenciais, da suspensão das atividades do Candomblé da Casa Branca (assunto de um dos capítulos) e outras entidades retratadas no livro, como a Sociedade Protetora dos Desvalidos, fundada em 1832 por negros libertos ou nascidos livres. Durante esse período, me dediquei à leitura de obras que tratavam do tema ou tinham alguma relação com o contexto histórico da época, inclusive trabalhos acadêmicos de mestrado e doutorado. Somente em janeiro de 2022 pude ir a Salvador para fazer as entrevistas e realizar as pesquisas in loco. Terminei a escrita do livro em agosto do mesmo ano, mas decidimos deixar para lançar em 2023 para evitar aquela fase conturbada das eleições, com a previsível tentativa de golpe bolsonarista, que gerava insegurança institucional e monopolizava as atenções.  


IMPRENSA: Como foi o processo de análise deste contexto histórico e as conexões com a contemporaneidade?


Contei com o apoio inestimável de intelectuais negros como Jurema Werneck, Luana Tolentino, Átila Roque, Gabriel Sampaio, Raimundo Bujão e Zulu Araújo para estabelecer as conexões com o presente. Especialistas em diversas áreas do conhecimento, eles me ajudaram a colocar a Revolta dos Malês em uma perspectiva mais ampla, não como um episódio isolado na luta da população negra, mas inserido em uma marcha histórica que continua em curso no país. É chocante a constatação de que diversos pontos que provocaram a revolta no século 19 permanecem em pauta. Se os escravizados cultivavam a escrita secretamente, pois a própria posse de manuscritos já configurava crime, hoje os afrodescendentes enfrentam, desde a infância, a restrição de acesso à educação plena. Inclusive com a discriminação racial nas salas de aula, que os empurra para fora do sistema de ensino e produz índices altíssimos de evasão escolar. Da mesma forma, negras e negros continuam como alvos preferenciais da violência policial, bem como de injustiças jurídicas, devido ao racismo que estrutura todo aparato de Segurança Pública, idealizado desde a sua concepção para coibi-los. Até o preconceito às religiões de matriz africana, ainda muito combatidas e atacadas, segue como um problema. Em meio à apuração, também descobri caminhos inesperados de conexão com o presente, como o excepcional trabalho de difusão de conhecimento dos blocos afros do Carnaval de Salvador, como o Ilê Aiyê, o Olodum e o Malê Debalê, cujo próprio nome homenageia os revoltosos. Com seus enredos atraentes e músicas bastante didáticas sobre o tema, são responsáveis por preservar a memória dos malês na Bahia.

 

IMPRENSA: Como o jornalista e advogado abolicionista Luiz Gama foi influenciado por este evento histórico?


Vendido na infância como escravizado, pelo próprio pai, um fidalgo de origem portuguesa, Luiz Gama é filho de Luiza Mahin, uma africana que se tornou figura mitológica e passou a ser associada à Revolta dos Malês, embora não haja qualquer referência à sua participação nos documentos da devassa. O único registro historiográfico sobre ela está em uma carta de Luiz Gama endereçada a um amigo que escreveria um perfil dele para um almanaque literário. Além da descrição física da mãe, ele a retrata como uma negra altiva e insubmissa, que mais de uma vez teria sido “presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito”. A despeito de Luiz Gama não ter citado especificamente a Revolta dos Malês, o simples fato de ele situar a mãe em Salvador, naquele período, deu margem a inúmeras suposições que virariam lenda. Trata-se de uma personagem enigmática, e o livro traz um capítulo inteiro dedicado a elucidar os seus rastros. 


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