A escravidão de africanos e seus descendentes foi base na formação do Brasil. Embora tenha sido o país que mais importou escravizados no mundo e que foi o último das Américas a abolir a escravidão, boa parte dessa história oficial é contada por vozes brancas, muitas delas herdeiras desse passado escravocrata.
Nos últimos anos, o jornalista Tiago Rogero tem se encabeçado projetos que revisitam a história a partir de um olhar afrocentrado – os podcasts "Negra Voz" e "Vidas Negras" – trazendo para o primeiro plano homens e mulheres negros que exerceram papéis fundamentais na trajetória do Brasil enquanto Nação.
Crédito:Angélica Paulo/Divulgação
Gravação de episódio do podcast na Ilha da Marambaia
E vem mais por aí! No próximo dia 6 de agosto, o jornalista mineiro lança o projeto Querino, um trabalho de fôlego que começou em 2020 e agora será publicado em um novo podcast produzido pela Rádio Novelo e em reportagens na revista piauí.
Inspirado em "The 1619 project", lançado "The New York Times" em 2019, o Querino chega para mostrar como a História explica o Brasil de hoje. No entanto, trata-se de uma história que muitos de nós ainda não tenhamos ouvido, lido ou visto.
Através de um olhar afrocentrado, o Projeto Querino aponta tanto para a contribuição afro-brasileira quanto a ganância desenfreada dos escravizadores. Conduzido por uma equipe majoritariamente negra, o projeto foi idealizado e coordenado por Tiago Rogero, com apoio do Instituto Ibirapitanga e consultoria em História de Ynaê Lopes dos Santos. À IMPRENSA, o jornalista conta detalhes do novo projeto dele junto à Rádio Novelo.
Crédito:Anita Machado/Divulgação
Tiago Rogero em ação em visita a São Luís, no Maranhao
IMPRENSA - O Projeto Querino foi inspirado em um trabalho do The New York Times. O que essa "versão" brasileira traz de diferente?
TIAGO ROGERO - Temos muito orgulho de dizer que nos inspiramos nesse projeto do The New York Times liderado pela Nikole Hannah-Jones. Mas as diferenças também vão ficar muito evidentes para quem ouvir. Primeiro, pelas diferenças históricas de formação dos dois países. O Brasil tem números de tráfico [de africanos] muito maior do que dos Estados Unidos. Das 12,5 milhões de pessoas que foram arrancadas do continente africano, 5,5 milhões tinham o Brasil como destino. Isso é 12 vezes maior em relação às pessoas que foram levadas para os Estados Unidos. O peso da escravidão lá [EUA] foi grande para formação do país e aqui foi ainda maior. Aliás, foi determinante. Não teria havido a colonização portuguesa, ela não teria continuado e não teria gerado nenhuma das riquezas da construção do país se não fosse a escravidão. Uma outra diferença que está posta é que, como eles abriram esses caminhos e tínhamos um projeto no qual se inspirar, pudemos também pensar com calma e talvez aprimorar alguns dos processos como, por exemplo, fazer as coisas com um pouco de calma. Tivemos bastante tempo para pesquisar, para poder pensar nos roteiros dos podcasts e para poder pensar nas publicações que vão sair na revista Piauí. O fato de eles terem feito primeiro acabou sendo uma vantagem que nos diferenciou.
IMPRENSA - O projeto engloba podcast, site e reportagens e ainda pode ter um documentário. Qual a intenção desse desdobramento em diferentes formatos?
No dia 6 de agosto vamos lançar todos os episódios do podcast, o site completo e a série de matérias na revista Piauí. Pensamos o Quirino como um projeto multiplataforma que vai continuar. Estamos tratando esse momento como um primeiro capítulo. Queremos que ele seja um espaço de discussão, de repensar mesmo o Brasil, não só o passado, mas de como o passado explica esse presente e do Brasil que podemos ser. Estamos tendo conversas para que o Querino se desdobre em outras mídias: livro, projeto educacional, alguma coisa no audiovisual, um documentário ou uma série documental. Faz parte da concepção do projeto aplicar essas coisas para além do podcast, das publicações em texto, ou seja, coisas que imaginávamos que seriam o nosso ponto de partida. A ideia é fazer com que o conteúdo chegue ao maior número de pessoas e de forma gratuita.
IMPRENSA - Você foi a voz do Negra Voz, do Vidas Negras e agora do projeto Querino. Acha que o Brasil está preparado para rever a trajetória do país sob a perspectiva dos africanos e seus descendentes?
Acho que o Brasil está tão preparado quanto ele pode estar. Tem muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Por exemplo, pessoas que sempre foram racistas e sempre tiveram comportamentos racistas no interior das relações sociais. Elas sempre foram racistas com pessoas negras em pequenos espaços, na rua, e agora elas estão com coragem de fazer isso abertamente, incentivadas por quem está no poder. Essa é uma das mudanças que está acontecendo pelo ponto de vista negativo, mas pelo ponto de vista positivo, nunca houve tantas pessoas negras assumindo a sua condição de pessoa negra, se percebendo negro, se descobrindo negro, buscando conhecer a própria história e buscando compreender o mundo com esse olhar afrocentrado. Imagino, também, que nunca houve tantas pessoas brancas comprometidas com a causa antirracista, buscando informação sobre isso. Acredito, mesmo que embora tenhamos tantos motivos para sermos pessimistas, ficar preocupados e ao mesmo tempo atentos e vigilantes, também estamos numa escalada nesse sentido e eu acho que o Brasil está melhor preparado hoje do que já esteve para poder olhar a história. Óbvio que ele ainda não está pronto para encarar isso, mas acho que cada vez mais as coisas vão caminhar melhor nesse sentido e eu espero que com esse projeto consigamos dar uma pequena contribuição na sequência de um trabalho. A inspiração desse projeto é o Manoel Quirino, um intelectual e abolicionista, um sujeito genial, mas também inspirados em cada pessoa negra que chegou aqui no Brasil e resistiu, ainda que não tenham sido reconhecidas pela sociedade como intelectuais. Estamos dando só uma contribuição, um grãozinho aí de areia, para tentar tornar o Brasil um país mais justo e que a nossa democracia seja uma democracia de fato.
IMPRENSA - Em pleno século XXI, vemos a imprensa publicando conteúdos com cunho racista com a licença de "ouvir diferentes vozes". Como você enxerga isso? Adianta criar conselhos editoriais mistos, mas sem prática efetiva?
Acho que o limite dessa dita pluralidade, desse dito ato de ouvir diferentes vozes, termina quando você tem o cometimento de um crime. Por exemplo, se fosse um artigo antissemita ou incentivando, promovendo e enaltecendo o nazismo ele seria tolerado? Mas quando se trata de um texto racista, supremacista branco, está liberado no Brasil. Então eu não vejo isso como pluralidade. Não vejo isso como discussão quando do outro lado está se praticando racismo ou supremacismo branco.
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