"Bolsonaro agride imprensa de maneira inédita após ditadura", diz Ricardo Noblat

Leandro Haberli | 13/04/2021 20:16
Jornalista formado em 1972 pela Universidade Católica de Pernambuco, Ricardo Noblat é há anos um dos principais colunistas de política do país. Um dos momentos mais marcantes de sua ascensão profissional se deu ainda na década de 1970, quando o empresário Nascimento Brito, proprietário e diretor do Jornal do Brasil entre os anos 50 e o início dos anos 2000, o convidou para substituir Carlos Castello Branco.

Jornalista político mais importante de sua geração, como Noblat gosta de definir, Branco era titular da Coluna do Castello, que foi publicada no JB durante mais de 30 anos. Foi essa experiência que abriu a Noblat as portas do centro do poder federal.

Atuando desde os anos 1980 em Brasília, o jornalista de fala mansa e jeito tranquilo já foi editor-chefe do Correio Braziliense e da sucursal local do Jornal do Brasil. Desde 2018 seu blog está hospedado no site da revista Veja, da Editoria Abril.

Na entrevista a seguir, concedida ao Portal IMPRENSA via chamada de vídeo, Noblat conta essas e outras passagens marcantes de sua carreira, além de comentar o cenário de cerceamento à liberdade de imprensa no Brasil, que ele atribui em imensa medida à retórica antijornalismo do presidente Jair Bolsonaro.   
Crédito: Reprodução YouTube

Portal IMPRENSA - Em que pé está o inquérito aberto a pedido do governo Bolsonaro, com base na Lei de Segurança Nacional, para te investigar? Para quem está por fora do caso ou esqueceu detalhes, você poderia fazer um resumo?
Ricardo Noblat - O ministro André Mendonça, que agora foi transferido de volta para a Advocacia Geral da União, pediu para a Polícia Federal abrir um inquérito por eu ter republicado um trecho da coluna do jornalista Ruy Castro na Folha de São Paulo. Nessa coluna o Ruy Castro sugeriu que o Donald Trump e o Bolsonaro se matassem. Eu publiquei um trecho na versão do blog no Twitter. E naturalmente, como é de praxe, eu dei um link para a leitura na Folha de São Paulo. Então o então ministro pediu a abertura de dois inquéritos, um contra o Ruy e outro contra mim, por eu ter republicado um trecho do artigo dele. Eu fui ouvido pelo advogado Miro Teixeira e depus. Aliás, houve dois inquéritos. Um é esse do Ruy Castro. O outro foi o da charge do Aroeira, que eu republiquei. Então são dois. O que já foi encerrado, pois a PF concluiu que não tinha razão de abrir, foi o da charge do Aroeira, na qual ele mostrava o Bolsonaro com um balde de tinta pintando uma parede de hospital com a suástica nazista. (...) O inquérito do Ruy Castro eu não tenho informações mais atualizadas, pois quem está cuidando dele é a Editora Abril, já que meu blog está hospedado no site da Veja.     

Portal IMPRENSA - Há também o caso do Hélio Schwartsman, articulista da Folha de São Paulo, que foi igualmente alvo de pedido de investigação feito pelo governo com base na LSN. Vocês chegaram a se falar, articular algum tipo de movimento conjunto de defesa?
Não me contataram para participar de um movimento desses. Como eu te disse, no caso do Aroeira foi o Miro Teixeira que me defendeu. E no caso do Ruy Castro é a Abril que está cuidando. Eu não fui contatado em nenhuma articulação nesse sentido.  

Portal IMPRENSA - A Lei de Segurança Nacional também foi usada contra o deputado Daniel Silveira. Você tem alguma opinião a respeito?
Não posso falar pois não tenho esse tipo de conhecimento jurídico. Imagino que o STF poderia ter se valido de outros recursos que a legislação oferece, em vez a da Lei de Segurança Nacional. Acho que essa lei tem que ir para o lixo, dando lugar a alguma lei que defenda o Estado Democrático. Não sei te dizer se foi absolutamente próprio do ponto de vista jurídico o Supremo utilizar a lei. No caso do Daniel Silveira eu preferiria que fosse invocada qualquer outra legislatura.

Portal IMPRENSA - Além do uso da LSN pelo governo federal, o Brasil vem protagonizando casos de ofensivas jurídicas e assédio judicial contra jornalistas. Isso é comum? 
Isso não é comum. No passado, já se valeram desse expediente, mas não como um método de coação ou como primeiro recurso para eventuais reparações de dano. Este governo está fazendo isso como uma maneira de ser. O presidente Bolsonaro agride a imprensa de uma maneira nunca vista depois da ditadura militar. Na ditadura militar se censurava, proibia informações na sua fase mais dura, depois se retirou a censura oficial esperando que a imprensa se autocensurasse – e muitos se autocensuravam, mas outros não. Mas nem a ditadura atacou tanto a imprensa como o presidente Bolsonaro. E não é uma coisa de auxiliares. É o próprio presidente da República. 

Portal IMPRENSA - A impressão que dá é que Bolsonaro tem uma certa predileção por você. Ele já havia te processado antes de se tornar presidente?
Sim, eu já respondi a outros processos do próprio Bolsonaro quando ele era candidato a presidente da  República. Ele queria direito de resposta. Era um processo da Justiça Eleitoral e ele perdeu mesmo recorrendo ao Tribunal Superior Eleitoral. 

Portal IMPRENSA - Levantamentos de diferentes institutos que atuam nas áreas de mídia e democracia comprovam o crescente cerceamento à liberdade de imprensa no Brasil. Você acha que esse cenário tem como principal causa a postura anti-imprensa de Bolsonaro? Ou outros fatores também contribuíram para tal deterioração?
É evidente que o presidente tem uma personalidade autoritária. É só você comparar com outros presidentes. Se isso ocorre agora, é evidente que se deve ao presidente. Ele fala mal da imprensa, insinuando que ela é corrupta, que ela só o critica

Portal IMPRENSA - Você se formou em Pernambuco mas fez carreira em Brasília. Poderia resumir essa transição e outros momentos marcantes da carreira, para quem não conhece sua trajetória?
Eu entrei em jornalismo em fevereiro de 67 e me formei na turma de 72, porque teve  um ano lá que 28 estudantes foram expulsos da universidade, acusados de subversão, e eu fui um deles. Por isso, a gente perdeu um ano. Continuei trabalhando em jornalismo. Em 74 saí para trabalhar em Salvador. Depois,  em 1982, vim para Brasília pelo jornal do Brasil e desde então moro aqui. 

Portal IMPRENSA - Que conselhos daria para quem está começando na cobertura de política?
Desconfie sempre, desconfie de tudo. Não tendo mais do que desconfiar, você publica. Esse é o conselho básico. Outro conselho é: não acredite naquilo que você quer acreditar. Isso me lembra a história de minha tia Zezinha. Ela era muito católica. Eu aprendi isso com ela. Papa Pio XII morreu e a Zezinha se desesperou com a morte, chorava, se desesperava. (...) Quando o papa João XXIII ficou doente,eu a vi tranquila. Não chorava, não se desesperava, continuava rezando, tranquila. Um dia eu perguntei: 'por que quando o Pio XII ficou doente você chorou e se desesperou tanto e agora com o João XXIII você está nessa tranquilidade?' Ela respondeu que fez uma promessa e tinha certeza que ela seria aceita. Ela pediu a Deus que em troca do papa, Ele podia levar uma prima dela paraplégica e eu também. Eu disse: 'Mas eu não quero morrer!' Naquela época eu fiquei preocupado. Ficava acompanhando a saúde do papa. Vai que a promessa da tia Zezinha se concretiza. Enfim, contei tudo isso para explicar que, assim como fez a tia Zezinha, acreditar naquilo que a gente deseja que aconteça é uma grande tentação e um grande risco para o jornalista. Um jornalista não pode acreditar naquilo que, no fundo, ele torce para acontecer.

Portal IMPRENSA - Essa história me lembrou um pouco a cobertura da Lava Jato, que foi muito criticada. O que você pensa a respeito? 
A imprensa foi meramente receptiva com as informações. (...) O pessoal da Lava Jato de Curitiba foi extremamente bem-sucedido nessa parte. E a imprensa clássica se deixou arrastar. De alguma maneira, a imprensa achava que era uma coisa boa e não tinha muita discussão sobre isso. Se soltava uma suposta prova. ela era publicada sem contestação. Esse era o erro. Não estou negando que tenha tido corrupção, como há. Ao longo do tempo, isso é inerente não só à política, como infelizmente ao ser humano. Mas a imprensa brasileira levou mais de 50 anos para admitir ter apoiado o golpe de 64. Eu espero que não seja necessário tanto tempo para que a imprensa, através de seus vários veículos, faça o mesmo em relação à Lava Jato. 

Portal IMPRENSA - Desde que você chegou em Brasília, o que mudou no trabalho de quem faz cobertura política no centro do poder federal? 
Quando eu cheguei aqui tinha uma cobertura maior pelas informações de bastidores, ainda resquício da ditadura militar e da abertura política. A informação de qualidade e bastidor, você só conseguia in loco. Ninguém se arriscava a dar declarações em on. Isso obrigava os jornais a terem bons repórteres, farejadores, com muitas fontes e que fosse mais a fundo investigar. De lá para cá, evoluiu para um jornalismo mais baseado em declarações oficiais. As redações também foram enxugadas e rejuvenescidas – eu absolutamente não tenho nada contra. Por onde passei, sempre tive ajuda de muitos repórteres jovens. Mas precisa ter um certo balanço – tem que ter repórteres jovens e gente mais madura. O jornalismo que se fazia nos anos 80 e um pedaço dos anos 90 era de qualidade superior. Hoje o jornalismo é mais preocupado com a velocidade para a publicação, mais dependente das fontes oficiais de informação e muito pouco criativo. É curioso, porque o jornalista desfruta de um espaço de liberdade que jamais teve. Eu abro os jornais e o que me atrai é uma grande cobertura, uma grande reportagem, um assunto surpreendente.

Portal IMPRENSA - Você acha que o pluralismo que a gente vê nos meios digitais, com várias agências de jornalismo investigativo, vai conseguir contrabalançar essa perda que você está apontando nas grandes redações?
Não sei se vai conseguir contrabalançar, mas sei que isso é extremamente positivo. Minha esperança de que se restabeleça e se revigore está depositada nesses projetos que você citou. Espero que sejam bem sucedidos, mas não sei se serão, porque não é fácil. Esse mesmo tipo de aposta, os jornalistas mais atentos fizeram em outra época usando a imprensa alternativa. A imprensa alternativa prestou um papel importante.

Portal IMPRENSA - Uma crítica que tem sido feita à imprensa é de uma excessiva influência do mercado financeiro em grandes veículos de comunicação, o que resultaria numa postura de não defender os interesses nacionais...
Essa influência sempre existiu e foi criada pela imprensa oficial, por dom João VI. Talvez ela tenha sido até maior em outros momentos.