“Os matizes ideológicos são uma relevante pressão para o interesse público na imprensa”, afirma Enio Moraes Júnior

Gisele Sotto, em colaboração | 22/04/2020 14:36
Qual é o espaço do interesse público nas atuais rotinas de produção jornalística brasileira? E sua relação com as mutações no jornalismo? Para avaliar estas questões, o Portal IMPRENSA entrevistou Enio Moraes Júnior, jornalista, professor e pesquisador brasileiro que vive em Berlim, na Alemanha. 

Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e membro do Alterjor (Grupo de Jornalismo Alternativo e Popular) da ECA-USP, Moraes Júnior publicou em 2017 um artigo que apresenta os resultados finais da pesquisa “Mutações no Jornalismo: o interesse público e as novas formas de ‘newsmaking’”. O estudo ouviu jornalistas profissionais ligados à imprensa tradicional sobre como a participação dos cidadãos nas rotinas de produção jornalística tem impactado o interesse público na construção da notícia. 

Nesta entrevista, o jornalista avalia os resultados dessa pesquisa, com base no panorama atual, comentando os impactos da pandemia do coronavírus, o papel das tecnologias de comunicação, os fatores que definem as mutações no jornalismo, e a liberdade de imprensa em meio a este cenário.
Crédito:Arquivo pessoal

Portal IMPRENSA - Pode definir o conceito de interesse público, associando ao jornalismo?

O interesse público é o elemento impulsionador da cidadania e tem uma relação direta com a democracia e os direitos humanos. Ele é uma espécie de força motriz que consolida o poder do cidadão, dando-lhe subsídios para tomar decisões. Sendo o jornalismo uma prerrogativa da vida democrática, portanto, não há como desvinculá-lo do interesse público. Idealmente, é ele que norteia o trabalho da imprensa para que cada leitor, telespectador, ouvinte ou internauta, a partir do contato com o fato jornalístico, tenha em suas mãos elementos avaliativos e decisórios alicerçados nos princípios democráticos. É importante dizer que esse interesse é uma via de mão dupla, que está tanto na esfera noticiosa como no âmbito de quem acessa a notícia. Claro que se você levar isso para o chão de fábrica das redações ou para o cotidiano social, as coisas não são tão simples. A imprensa tem e sempre teve um papel fundamental na consolidação dos direitos humanos. No entanto, mesmo nas sociedades onde há alta confiança política e qualidade democrática, existem conflitos e diferentes objetivos em jogo. Mas o importante é esse esforço permanente, por parte de atores sociais, como a mídia, os políticos, as instituições e os cidadãos, de salvaguardar o interesse público. Em lugares onde há pouca confiança e baixa qualidade da democracia, tanto pior. Se eu tenho a informação jornalística de que existe uma pandemia aí fora, com dados corroborados pela OMS, a Organização Mundial de Saúde, e que eu posso estar infectado mesmo sem saber, estou tendo acesso a um dado de interesse público. Portanto, não posso sair por aí passeando, organizando eventos e colocando em risco a vida das pessoas. Se eu ajo dessa forma, ajo contra a sociedade, contra a democracia e em desacordo com o interesse público.
 
Portal IMPRENSA - No artigo, você afirma que o fazer jornalístico deveria ser permeado, todo tempo, por uma conduta ética, levando-se em conta a relevância pública da informação. Qual é o espaço do interesse público nas atuais rotinas de produção jornalística brasileira? E quais são as pressões mais recorrentes que acabam interferindo nessas rotinas?

Jornalismo é processo, é contradição, e os matizes ideológicos são uma relevante pressão para o interesse público na imprensa. Existe aí, primeiro, uma questão de campo, de abordagem. Por exemplo, uma matéria pode contemplar o interesse público de diferentes formas, valorizando mais uma fonte que outra. E é fácil entender isso porque há uma certa margem para subjetividades. Mas eu diria que interesse público tem a ver com gente, com os direitos das pessoas. O problema é quando alguns setores menosprezam essa dimensão em nome de dogmas que defendem ditaduras e a superioridade de uns grupos sobre outros. Quem pensa dessa forma corrói o papel da imprensa e a própria humanidade. E aí aparece uma segunda questão: o planeta e o nosso país estão divididos e há pouco espaço para dialogar. Existe uma oferta massiva de informações, mas as pessoas conversam cada vez menos. Nas redes sociais, o diálogo foi reduzido a likes ou à ausência deles. Nos portais da imprensa, outra tristeza, basta ler os comentários das matérias, por exemplo. Na maior parte dos casos, são drops de ódio, de desprezo pelo outro e de arrogância. Eu moro em Berlim há três anos e acompanho como as coisas acontecem aqui. Embora a Alemanha seja um país de inquestionável qualidade democrática, o jornalismo tem mostrado que uma perigosa onda nacionalista cresce e ameaça a cidadania, os imigrantes. Por isso, eu costumo falar que a crise que a gente identifica no jornalismo há 20 ou 30 anos não é exatamente uma crise da imprensa, mas da tolerância, da solidariedade. E aí não depende apenas da mídia. Cabe, sobretudo, à educação, que é alicerce da cidadania, encontrar um caminho para começar a resolver isso. Outra pressão para interesse público no jornalismo é o fator econômico. Esse foi o elemento mais contundente que eu encontrei na pesquisa Mutações, que fiz na ESPM, sobre as redações brasileiras. Para as teorias do jornalismo, essa questão foi se tornando mais forte na medida em que os jornais foram se consolidando no mercado. Ora, em um mundo onde as empresas precisam garantir seus lucros, elas vão se sentir tencionadas a investir nesse universo do consumo: 'Vamos lá, vamos dar Big Brother porque dá audiência'. É exatamente para combater a naturalidade desse tipo de escolha que o jornalista precisa ser formado, bem formado. Aliás, essa é uma terceira pressão importante para o interesse público no jornalismo: a vigilância de editores e repórteres sempre foi essencial para assegurar o protagonismo do cidadão na imprensa. ‘Ok, a gente precisa vender notícia, mas não existe notícia sem interesse público’. E aí, o jornalista vai equilibrando as coisas em meio às contradições.

Portal IMPRENSA - As tecnologias de comunicação permitem maior participação dos cidadãos nos espaços da imprensa. Qual é o impacto disso na produção de notícias? Essa maior participação motiva também o “Jornalismo de Soluções”, com foco nos cidadãos?

Teoricamente, as tecnologias auxiliam na participação dos cidadãos na mídia, mas os filtros políticos e econômicos, além do jornalista, como disse antes, interferem muito no processo. E aqui vale chamar atenção para um quarto fator que impacta a produção noticiosa: o público. Quem é esse ator e o que ele vislumbra em relação ao papel do jornalismo? Essa não é uma questão fácil de responder, principalmente na sociedade em que vivemos. Em todo caso, ao se comprometer as decisões dos cidadãos, o jornalismo os empodera. Algumas vezes, esse empoderamento está focado em uma solução e o repórter precisa colaborar. A ele cabe pautar entrevistas e correr atrás de dados que possam ajudar a resolver o problema. Acho que, quanto mais local o jornalismo, melhor se efetiva isso. Esse é um ganho e tanto para o compromisso da imprensa com o interesse público e está claro na página da Solutions Journalism Network, que financia projetos locais de comunicação. Então eu chego a outro ponto da sua pergunta: as tecnologias. Elas são hoje importantíssimas para o jornalismo, mas nada substitui o ‘olho no olho’, o ‘in loco’, o ‘sujar os sapatos’, como diziam os antigos mestres da profissão. Se você, como jornalista, não esteve na fila de vacinação dos idosos, ali, naquele bairro, se não conversou com as fontes e não sentiu o clima do local, seu texto não vai trazer o registro e a precisão do que está acontecendo. Dificilmente você vai encaminhar solução para alguma coisa. É importante, hoje, exercitar reportagem à distância? Sim, e esse esquema funciona muito bem para alguns casos, como a entrevista ping-pong, mas nada substitui o ‘in loco’. A ideia de solução passa pelo envolvimento do repórter com o fato e o entorno do acontecimento. Portanto, a produção noticiosa funciona muito bem com subsídio das tecnologias, mas nada substitui um jornalista bem preparado, curioso e presente no local do fato.

Portal IMPRENSA - Quais são os principais fatores que definem estes tempos de “mutação” no jornalismo? E como fica a liberdade de imprensa em meio a este cenário? 

O termo mutação se refere a elementos trazidos pelas tecnologias para o jornalismo e para as rotinas de produção da notícia. Possibilidades multimídia, atualizações e o acesso a dados transformaram a forma de se fazer reportagem, trazendo-lhe vigor. Nesse cenário de tanto fake e tanta news, a empresa jornalística e seus profissionais já começam a se dar conta de que precisam, cada vez mais, enfatizar para o leitor a utilidade pública dos seus serviços. Isso está assinalado nos resultados da pesquisa que fiz. Essa é uma questão que para muitos profissionais e estudiosos da área sempre foi muito clara, mas existe, para grande parte do público, entre a vida dele e as notícias que ele acompanha, um limbo. Você abre e-mails e mensagens que chegam no seu celular mesmo que você não saiba quem está enviando? Você clica em todos os links de vídeos que seus conhecidos mandam por WhatsApp? Eu não. Se trouxemos isso para a imprensa, é aí que se estabelece a fronteira da confiança, do princípio da credibilidade e da possibilidade de aquela informação ser útil para a sua vida. Informações enviadas por pessoas que costumam checar as fontes e me avisam do que se trata, eu confiro. Essas pessoas estão me dizendo: ‘isso aqui tem um teor de veracidade, tem checagem’. Portanto, eu abro a mensagem. Posso discordar ou concordar com o que está escrito naquele artigo, mas leio e, de uma forma ou de outra, o conteúdo me será útil. Mais ou menos isso acontece com o jornalismo. Ele continua a ser uma chancela de veracidade, de checagem dos fatos, mas precisa responder cada vez mais claramente algumas perguntas: essa notícia é útil para a vida do cidadão? Qual a melhor maneira de construir essa informação e ajudá-lo a tomar decisões? E o público precisa perceber a transparência dessa opção editorial. Com certeza não é produzindo informação ‘mundo cão’ nem programas televisivos que fazem o cara passar a manhã inteira acomodado em frente à TV que vai funcionar. Um elemento basilar nesse contexto é a liberdade de imprensa. O nosso país ocupa um espaço muito ruim no ranking da liberdade de imprensa do Repórteres Sem Fronteiras, a 107ª posição em uma lista de 180 nações. Por isso, o jornalismo brasileiro precisa lutar o tempo todo, dentro de contradições que variam em cada época e em cada região, para ser útil ao cidadão. Quanto mais livre o jornalismo, melhor ele capitaliza os adventos tecnológicos e mais útil se torna para a democracia. Ganha o cidadão, ganham os direitos humanos... Esse é um processo histórico e, claro, mais uma vez a imprensa não está sozinha nessa guerra. Essa batalha está muito nas mãos da educação, de uma educação libertadora, como pensada por mestres como Paulo Freire. Mas o jornalismo precisa continuar fazendo o seu papel cotidiano, diário.

Acesse neste link o artigo que apresenta os resultados da pesquisa “Mutações no Jornalismo: o interesse público e novas formas de ‘newsmaking’”. O estudo foi uma iniciativa do Mestrado Profissional em Produção Jornalística e Mercado (MPPJM) da ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo, a qual Moraes Júnior esteve vinculado como professor e pesquisador, além de ter atuado como coordenador pedagógico do curso de graduação em jornalismo da instituição.


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