Em agosto de 2009, o leitor Daniel Seidl, recordado de uma coluna publicada 14 anos antes, na edição 91 da revista IMPRENSA, solicitou à redação o envio do arquivo para que novamente pudesse ler o texto. Tratava-se de artigo do jornalista Armando Nogueira, no qual contava uma saborosa metáfora sobre o desafio da edição de texto. Seidl teve sua carta publicada em nossa edição de setembro do ano passado e despertou, assim, a curiosidade de no mínimo outros três leitores até o fechamento desta edição.
Sensíveis a essas e futuras solicitações, republicamos o texto de Armando Nogueira, ex-diretor de Jornalismo da TV Globo na edição de Janeiro/Fevereiro de 2010 da revista. Hoje, republicamos no Portal IMPRENSA, em homenagem ao colega, que
faleceu na manhã desta segunda-feira (29), vítima de câncer no cérebro.
ESCREVER É A ARTE DE CORTAR PALAVRAS
DE QUE MESTRE DAS LETRAS TERIA PARTIDO ESSA PRECIOSA LIÇÃO?
POR ARMANDO NOGUEIRA
Escrever é cortar palavras. Passei alguns anos certo de que o autor dessa preciosa máxima era Carlos Drummond de Andrade. Até que um dia perguntei ao poeta. Ele conhecia, mas negou que fosse dele. Confesso que fiquei desapontado. A sentença tinha a cara do mestre Drummond, cuja prosa é um exemplo de concisão.
Otto Lara Resende desconfiava que pudesse ser de um escritor mexicano a ideia da dica preciosa. Eu, por mim, seria capaz de atribuí-la a John Ruskin, notável escritor e crítico inglês do século passado. Se não o disse, com todas as letras, certamente foi Ruskin quem melhor ilustrou o adágio, num conto antológico. É o caso de um feirante de peixes num porto britânico.
O homem chega à feira e lá encontra seu compadre, arrumando os peixes num imenso tabuleiro de madeira. Cumprimentam- se. O feirante está contente com o sucesso do seu modesto comércio. Entrou no negócio há poucos meses e já pôde até comprar um quadro-negro pra badalar seu produto.
Atrás do balcão, num quadro-negro, está a mensagem, escrita a giz, em letras caprichadas: HOJE VENDO PEIXE FRESCO. Pergunta, então, ao amigo e compadre:
- Você acrescentaria mais alguma coisa?
O compadre releu o anúncio. Discreto, elogiou a caligrafia. Como o outro insistisse, resolveu questionar. Perguntou ao feirante :
- Você já notou que todo o dia é sempre hoje? - E acrescentou: - Acho dispensável. Esta palavra está sobrando...
O feirante aceitou a ponderação: apagou o advérbio. O anúncio ficou mais enxuto. VENDO PEIXE FRESCO.
- Se o amigo me permite - tornou o visitante -, gostaria de saber se aqui nessa feira existe alguém dando peixe de graça. Que eu saiba, estamos numa feira. E feira é sinônimo de venda. Acho desnecessário o verbo. Se a banca fosse minha, sinceramente, eu apagaria o verbo.
O anúncio encurtou mais ainda: PEIXE FRESCO.
- Me diga uma coisa: Por que apregoar que o peixe é fresco? O que traz o freguês a uma feira, no cais do porto, é a certeza de que todo peixe, aqui, é fresco. Não há no mundo uma feira livre que venda peixe congelado...
E lá se foi também o adjetivo. Ficou o anúncio, reduzido a uma singela palavra: PEIXE.
Mas, por pouco tempo. O compadre pondera que não deixa de ser menosprezo à inteligência da clientela anunciar, em letras garrafais, que o produto aí exposto é peixe. Afinal, está na cara. Até mesmo um cego percebe, pelo cheiro, que o assunto, aqui, é pescado...
O substantivo foi apagado. O anúncio sumiu. O quadro-negro também. O feirante vendeu tudo. Não sobrou nem a sardinha do gato. E ainda aprendeu uma preciosa lição: escrever é cortar palavras.
DOS PÉS À CABEÇA
Esporte e arte. Literatura e cultura física. Ardente fusão de corpo e mente. Alma e suor. Uma das forças primordiais da Grécia exemplar era a capacidade de reunir, sob o manto olímpico, as porfias do músculo e do espírito. Não são poucos os escritores e poetas do nosso tempo que buscavam o estado de graça, precedendo a criação artística do esforço físico.
Montaigne costumava atiçar a brasa de suas reflexões em longas caminhadas pelo bosque do castelo da família, na França. Não encontrou nem a verdade nem a justiça entre os homens, mas certamente andou perto da perfeição literária com seus admiráveis "Ensaios".
O próprio Montaigne confessava sua predileção pelas caminhadas matinais.
- Meus pensamentos simplesmente adormecem quando estou sentado. Meu espírito só desperta, mesmo, quando minhas pernas se agitam.
Outro francês não menos célebre, Rousseau, nunca abriu mão de um passeio a pé, breve que fosse, de manhãzinha.
- Não consigo criar nada se me sento à mesa para escrever. É nos passeios de cada dia, batendo pernas, que meu cérebro começa a conceber minhas melhores ideias.
Goethe, por sua vez, chega a ser radical:
- Tudo o que me acontece de bom, como inspiração, como expressão, me vem quando estou caminhando.
Por fim, um conselho de Nietzche: "Fique sentado o menos que puder. Não confie nas idéias que lhe ocorrem quando estiver quieto. As boas idéias virão sempre ao ar livre, em plena festa dos músculos. A vida sedentária é o verdadeiro pecado contra o espírito."
PEDIDO COM ESCALA
Rubem era um repentista admirável. Enriquecia um simples diálogo com tiradas que encantavam os amigos mais chegados. Sou testemunha e personagem de meia dúzia de situações em que o mestre Braga me agraciou com pérolas do seu abençoado espírito. Trabalhávamos juntos na TV Globo. Uma tarde, Rubem chega para um cafezinho na minha sala. Eu, assinando papéis; ele, a meu lado, em silêncio. Pelas tantas, Rubem me pergunta, timidamente:
- Armando, será que você poderia me arranjar uma passagem de avião pra Vitória, Espírito Santo. Preciso ir a Cachoeiro [terra dele] rever os parentes... Em Vitória, pego um carro...
Respondi, dando às minhas palavras um tom de queixa. Afinal, por que tamanha cerimônia para pedir uma passagem para Vitória?
Rubem, então, retrucou com entusiasmo:
- Bom, se a coisa é assim tão fácil , então vou querer a passagem com escala em Paris: Rio-Paris-Vitória...