A escalada de autoritarismo do presidente Jair Bolsonaro não foi surpresa para grande parte da população brasileira, especialmente para a jornalista Miriam Leitão.
Um dos maiores nomes da análise política e econômica no país, a jornalista lança 'A Democracia na Armadilha - Crônicas do Desgoverno' (Editora Intrínseca), onde faz um passeio por meio de suas crônicas entre as principais atitudes antidemocráticas do comandante do país.
O ponto de partida da obra é a fala de Bolsonaro, então deputado, na votação do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef (PT) na Câmara. Na ocasião, ele exaltou a figura do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado pela Justiça como torturador em 2008, chamando-o de "pavor de Dilma Rousseff".
Crédito:Rafaela Cassiano.j
Miriam Leitão lança o livro 'A Democracia na Armadilha - Crônicas do Desgoverno'
Como é sabido, Usta torturou Dilma nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo, por sua atuação em grupos políticos durante o período da Ditadura Militar.
"Naquele momento eu escrevo que ele [Bolsonaro] precisava ser cassado. E a segunda coluna já é a questão militar, em 2017 os movimentos militares já mostrando um comportamento diferente. Até o Hamilton Mourão, dando declarações golpistas e no governo Temer, não sendo punido por isso, e contando com apoio do [General] Villas-Boas [à época, Comandante do Exército]. E vou falando da campanha", conta, em entrevista ao Portal IMPRENSA.
O livro foca na ameaça a democracia representada pelo bolsonarismo, explica Miriam.
"Por isso que se chama 'Democracia na armadilha'. Mas eu falo de outras coisas do governo, dou um panorama dos ataques do governo à questão ambiental e climática", exemplifica.
"Ele nunca demonstrou apreço pela democracia, portanto faria um governo autoritário. No entanto, chegou lá e fez pior até do que muita gente poderia considerar. Eu sempre tive as piores expectativas, e isso se confirmou, e até se superou quando chegou a pandemia. Quando chegou a pandemia ele se mostrou um governante ainda pior do que antes", avalia Miriam, que conta sequer ter acreditado no projeto de economia proposto pelo presidente nas eleições de 2018.
"Desde o começo eu não acreditei no projeto liberal na economia e falei que não haveria, falei isso antes da posse, e tudo se confirmou agora."
"[O livro] Chama-se 'Democracia na Armadilha - Crônicas do Desgoverno' porque a armadilha é isso: um inimigo da democracia é eleito democraticamente, essa que é a contradição. Reconheço a eleição que o levou ao poder, mas desde o começo, ele não se comporta democraticamente", analisa.
"Tanto que, no discurso de posse, ele falou que há divisão mesmo na hora de somar. Essa é uma em que um presidente abre o leque para falar para todo país, e ele fez um discurso excludente. E daí em diante, fez coisas piores, como a conspiração aberta contra a democracia com os nossos recursos", lembra.
Miriam chama atenção para o que chama de "armadilha" em que o Brasil está colocado, do ponto de vista democrático. Para a jornalista, o fato de Bolsonaro utilizar a máquina pública em benefício próprio, não só em razão do cargo, deveria ser um alerta para brasileiros.
"Isso tem que ficar claro para o contribuinte brasileiro: ele usa o nosso dinheiro, o dinheiro que sustenta a presidência, que sustenta o presidente da república, que sustenta a comunicação do presidente da república, todos esses aparatos da presidência contra a democracia. Isso que é a armadilha na qual nos estamos. Estamos financiando um ataque ao que consideramos mais valioso no nosso pacto social", diz.
"Fizemos um pacto em 1988, com a Constituição, que era seguir respeitando os seus valores, a principal parte da democracia. A Constituição pode ser alterada, mas não pode ser traída.O que Bolsonaro faz é trair a constituição. (...) Estamos em uma armadilha. Como é que a gente faz quando um inimigo da democracia se instala no coração do poder?", questiona.
Ao contrário de muitos analistas que aceitam o argumento de que Bolsonaro "moderou" o tom com alguns recuos, Miriam é taxativa ao dizer que não acredita que o presidente seja menos autoritário quando volta atrás em alguma decisão. Ela traça um paralelo com um homem que agride mulheres: ele pode pedir desculpas, parecer moderado, mas em algum momento, voltará a ser agressivo com suas vítimas.
"A última coluna desse livro chama-se "A democracia morre no fim desse enredo". Estou deixando clara a minha posição de que não acredito em nenhuma moderação, e faço um paralelo entre Bolsonaro como agressor da democracia e agressores de mulheres. O agressor da mulher que vai praticar o feminicídio, bate, pede desculpas, recua, parece moderado, e um belo dia ele vem com uma arma e mata a mulher. O roteiro é o mesmo. Faço um paralelo entre esse agressor e falo que a democracia brasileira está sendo agredida, e o agressor é o próprio presidente da república."
Liberdade de imprensa e agressões contra repórteres mulheres
Nas colunas, Miriam também aborda as diversas agressões do presidente aos jornalistas no dia a dia da cobertura do Planalto.
"Ele fez agressões até a mim! Muito sórdida. Mas não trato da minha agressão, como não tratei na coluna. Mas da agressão a imprensa, de uma forma geral, como parte do mesmo arsenal: todo autoritário faz isso. Os autoritários seguem um manual, e atacam a imprensa. Tentam controlar, tirar credibilidade, e principalmente, escolhe alvos, pessoas físicas, para personalizar a campanha de descrédito. Hugo Chavez fez isso", conta.
Ela foi uma das vítimas dos comentários do presidente da República e de seus seguidores nas redes sociais, e conta como foi ocupar esse lugar onde outras mulheres de renome da comunicação infelizmente já estiveram.
"É terrível. Várias outras mulheres estiveram. É um dos lados da sua personalidade doentia, ele ataca particularmente as mulheres, ele tenta tirar credibilidade naquilo que a pessoa mais preza. Vivemos da nossa credibilidade", conta.
"Quando é o presidente que ataca, é um peso maior, ainda que você tenha todo tipo de crítica. No meu caso, ele estava usando uma entrevista coletiva à imprensa estrangeira quando ele falou mentiras sobre mim. E se você for entrar na Justiça contra ele, não dá, porque a presidência é blindada, não dá para ir adiante. Eu me senti muito mal, até porque, em seguida - e ele já fez isso com outras pessoas, a Constança [Rezende], a [Patrícia] Campos Mello - o gabinete do ódio inicia o ataque violento na rede social com mentiras".
Os seguidores do presidente afirmam que Miriam Leitão teria participado da luta armada, participando de um assalto a banco durante a Ditadura Militar. Ela explica, no entanto, que época, ela ainda morava em Caratinga, Minas Gerais, e tinha apenas 14 anos.
"O jogo é conhecido, mas quer alertar para isso: estamos passando pela pior pandemia da nossa história, uma dilacerante dor coletiva, e com um presidente que usa todo o aparato disponível contra nós e contra a democracia. E precisamos estar alertas, a gente precisa construir o futuro, resistir até o final contra essa onda autoritária e a essa ameaça antidemocrática que Bolsonaro representa e sempre representará."
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