“Ultraje e constrangimento”, por Rafiza Varão

Opinião

Rafiza Varão | 04/06/2024 15:44

“Cadê a Globo dentro da água? Tem empresário do Brasil trabalhando mais que o presidente. Por que a Globo só veio agora gravar? Por que não teve ninguém dentro da água antes? Por que vocês não estiveram com a gente dentro desse resgate? Na hora de botar na mídia é fácil. Depois que está tudo seco é fácil vir falar”.


Não é novidade, nem aconteceu ontem. Nem um caso isolado, mas exemplar. Essas foram as falas de um gaúcho diante das câmeras da rede Globo de televisão no dia 7 de maio, quando William Bonner apresentava o Jornal Nacional direto de uma Porto Alegre arrasada pela inundação e pela tristeza. É um discurso repleto de dor e desespero, claro. Mas é também sintoma de algo anterior, resistente e ainda muito difícil de contornar: a raiva disseminada contra jornalistas e os sistemas de comunicação tradicionais. Também não é fato novo que, durante a última década, pelo menos, a violência contra esses profissionais aumentou exponencialmente (ainda que haja um pequeno decréscimo em 2023), como bem documentado nos Relatórios de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, da FENAJ.


No período, esse sentimento forteleceu seus vieses de ultraje, delimitado pelo professor de Filosofia Política Michael Sandel como “um tipo específico de raiva que você sente quando acredita que as pessoas estão conseguindo algo que não merecem” – e que o dicionário Oxford define como “uma ofensa muito grave”. 


O ressentimento que ecoa pela voz do cidadão anônimo, questionando uma empresa de comunicação privada sobre seu papel nos resgates no Rio Grande do Sul, nos aponta, junto a toda afluência de desinformação e fake news sobre as enchentes, a persistência de uma imagem do jornalismo e dos jornalistas como inimigos que devem ser combatidos e afrontados, mesmo diante de ações bem-intencionadas como deslocá-los de seus estúdios para as ruas. 


Crédito:Divulgação/ FAB

A calamidade do mês de maio repete que, ao contrário de se compreender a presença de jornalistas como um sinal de segurança, de normalidade democrática e de algum tipo de garantia de uma divulgação um tanto mais fidedigna dos acontecimentos, percebe-se sua aparição como carimbo de injustiça, como um desaforo. A desconfiança em relação aos jornalistas sempre existiu, mas o que ainda se vê é maior que do que uma simples suspeita, é a certeza de que estamos do lado errado, estamos do lado da usurpação. 


Nesse sentido, esbravejar contra jornalistas na rua virou uma espécie de justiçamento, por meio do constrangimento ou mesmo pela violência física, uma desforra contra a arbitrariedade desses profissionais – e demonstra que o lugar do jornalismo na democracia brasileira, portanto, ainda está longe da zona de confiança em que tantas vezes se almeja estar. E isso será reforçado sempre que diante de situações extremas. 


Retomar minimamente o espaço da credibilidade deveria estar no planejamento, no radar e na busca de soluções de quem exerce o jornalismo, mesmo sabendo-se que essa luta conhece poucos dias de glória, além de ter se tornado tarefa ainda mais hercúlea desde o azeitamento da máquina de distribuição de conteúdos pelos sistemas das plataformas digitais (que, sabemos, prezam mais pelo engajamento do que pelos fatos). Mas nenhuma transformação virá de fora para dentro, não neste caso. Deve-se fortalecer publicamente (e sobretudo internamente) a imagem de que os jornalistas não inventam as histórias e que, a despeito das relativizações e ainda da queda do mito da objetividade, “somos acima de tudo jornalistas. Somos os que contamos a verdade”, como defende a jornalista filipina Maria Ressa.

  

Crédito:Arquivo Pessoal

*Rafiza Varão é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (2012), na área de Teoria e Tecnologias da Comunicação. É mestre em Comunicação também pela Universidade de Brasília (2002), na área de Imagem e Som. Graduou-se em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (1999). Leciona na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e trabalha especialmente com Teorias da Comunicação, Ética e Redação Jornalística. Coordena o projeto SOS Imprensa e é coordenadora editorial da FAC Livros.


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