250 km separam Maceió de Recife. A capital pernambucana é o território das práticas de xangô ou xambá, trata-se de manifestações afro-brasileiras diaspóricas que absorveram traços regionais. São muitas as manifestações e práticas de terreiro em Pernambuco, Xangô é uma delas e boa parte dele, veio fugido de Maceió, por conta de um ataque as religiões afro-brasileiras, conhecido como o Quebra de Xangô.
“Xangô é um termo usado praticamente pelos intelectuais, os religiosos usam apenas candomblé e umbanda. Eu o utilizo como forma de enfatizar as particularidades das religiões afro-alagoanas, que são muitas”, explica a antropóloga Larissa Fontes, autora de uma tese que investiga o evento e também de um artigo publicado na UFBA – Universidade Federal da Bahia.
Um grupo civil organizado, a Liga dos Republicanos Combatentes, atacou violentamente cerca de 30 terreiros de religião afro-alagoanos, inclusive estimulando populares. A invasão, destruição, saqueamento e espancamento de pessoas, seguiu ainda durante alguns dias na capital e cidades do interior. Uma das principais mães de terreiro, a Ialorixá Tia Marcelina, foi golpeada na cabeça e dias depois do ataque, não resistiu e morreu.
Crédito:Reprodução
Muro na região central de Maceió
Maicon Marcante, historiador do Iphan de Alagoas, em Maceió, defende que o Quebra de Xangô, envolveu uma disputa política, que usou as religiões afro-brasileiras como pretexto. “O estopim desse acontecimento foi uma disputa política entre oligarquias locais do estado de Alagoas. O então governador foi acusado, pela oposição política, de frequentar e apoiar em alguma medida os terreiros. Por conta disso, esses terreiros se tornaram alvo desses opositores políticos, como forma de ataque ao governador”.
O governador acusado de macumbeiro era Euclides Malta, que ocupava a cadeira há 12 anos, seu opositor político era o primo de Hermes da Fonseca, presidente da República do Brasil, naquele momento, Clodoaldo da Fonseca e contra Malta pesavam acusações de corrupção, entretanto não foram essas as justificativas que o fizeram a perder a eleição, mais sim, notícias publicadas em vários jornais da época em Maceió, afirmando que Malta frequentava terreiros de religiões afro-alagoanas. “Nenhuma acusação de corrupção contra Euclides Malta, porque sim, elas existiram, foi tão grave quanto ser macumbeiro”, aponta a antropóloga Larissa Fonte.
É nessa tensão social, que a Liga dos Republicanos Combatentes, um tipo de milicia irmanada com a política local e fanática religiosa, vê uma oportunidade de higienizar a cidade, silenciando e expulsando as manifestações da cultura afro-alagoanas, junto com a população negra de Maceió e arredores. O puro suco das oligarquias brasileiras da primeira república, mas também do que viria seguir nos anos de Estado Novo, sob liderança de Getúlio Vargas.
Nele, outros episódios de violência e intolerância religiosa voltaram a acontecer, como práticas políticas das forças policiais do Estado brasileiro ou legitimadas por ele. São registrados e conhecidos casos em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, mas é possível imaginar que muitos outros casos não notificados, aconteceram.
Os ataques se assemelham muito ao ocorrido em 1912, em Maceió, primeiro a invasão, o saque e destruição e em seguida as violências verbais e físicas, e em muitos casos, prisões. Quem registra em texto o ataque sofrido em 1937, no Recife, é Manuel do Nascimento Costa. Publicado em 1988 na ocasião no Congresso Internacional “Escravidão”, na USP, em São Paulo, coordenado pelo professor Reginaldo Prandi.
Durante os ataques todas as representações das práticas de manifestação afro-alagoanas foram violentadas. As que não foram destruídas, foram saqueadas e expostas por alguns dias para a cidade ver, tal como troféus de guerra, nas palavras de Maicon Marcante. Tal como as cabeças dos cangaceiros, exterminados pelas policiais locais com auxílio do governo federal, anos depois no sertão nordestino. A função era dupla: afirmar desavergonhadamente a vitória sobre o oponente e aterrorizar, para não mais se repetir. Um sinal claro de violência religiosa e racial. Subtrair de quem já foi tão sequestrado em sua cultura, família e tradições.
Depois da macabra exibição, as peças foram encaminhadas para a Sociedade Perseverança e Auxílio, uma associação com fins educacionais, composta por intelectuais e parte da elite alagoana e também ligada a Liga dos Republicanos Combatentes. Apenas em 1950, elas foram encaminhadas para o Instituto Histórico Geográfico Alagoas. Segundo a antropóloga Larissa Fontes, que fotografou todas as peças em 2015, são mais de duzentas. Larissa pesquisou o acervo que recebeu o nome de Coleção Perseverança e hoje é patrimônio dos povos e comunidades tradicionais de terreiros de Alagoas, desde o decreto estadual número 25.864, de 2013. Também houve um pedido de desculpas oficial do governador a época Teotonio Vilela Filho.
Segundo ela, as peças necessitam urgentemente de restauro, “muitas estão quebradas, com cupins”. E as perdas não param por aí, muitos rituais foram esquecidos, além do temor em transmitir uma prática religiosa baseada na oralidade. No lugar dos tambores, que silenciaram pelo temor de mais violência, o canto que é reza, era feito aos murmúrios, às vezes algumas palmas.
Para Pai Célio de Iemanjá, dirigente de terreiro e liderança religiosa alagoana, o Quebra está no dia a dia na cidade de Maceió, aliás, para ele, são vários quebras, desde de o ataque ao Quilombo de Palmares, em 1695, até a exigência de criar uma Federação durante o regime militar, como forma de controle e vigilância. Em suas palavras criou-se uma ideologia do Quebra, que deve ser combatida com a ideologia do afeto, presente em terreiros e comunidades de matriz afro religiosas. “O acesso à educação e as universidades transformaram essa situação”.
Outros sinais da reza alta já se ouvem ao longe. O acesso à memória é parte de mudanças recentes. O Tribunal de Justiça do Estado, através de Centro de Cultura e Memória do Poder Judiciário de Alagoas, desde 2021, mantêm um museu onde estão arquivos sobre o Quebra de Xangô.
O passado nos alerta: nenhuma tradição ou instituição está a salvo dos delírios fundamentalistas. Tia Marcelina em 1912, Mãe Yá Mukumby, em 2013, Ialorixá Bernadete em 2023, entre tantos outros casos e violência religiosa. O ensinamento do tempo não é passivo. Um estado democrático é laico, defende a livre manifestação de culto religioso e deve resistir e se reconstruir toda vez que é obrigado a rezar baixo.
Ciça Carboni é jornalista, documentarista e professora do Centro Universitário das Américas – FAM. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e autora do livro - Quem sabia já morreu.
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