Há algum tempo, o uso do termo tragédia vem sendo criticado por fazer com que o acontecimento o qual ele adjetiva pareça algo inesperado, impossível de prever, e sem culpados. Essa é uma visão marcada por uma transposição da ideia de destino (ligada às artes, sobretudo à literatura) para o trágico, esquecendo suas acepções que partem, de outra forma, sobretudo da filosofia contemporânea. Neste aspecto, o filósofo brasileiro Ubaldo Puppi, por exemplo, se contrapõe ao senso comum ao afirmar que o trágico, além de ser uma manifestação da violência, tem sua causa e origem nas estruturas de poder. Assim, no tantas vezes chamado mundo real, o trágico é uma espécie de situação-limite, um “sofrimento exemplar às últimas consequências” que não se trata de algo que ocorre por destinação, mas que se constrói na história e se insere “nos limites previsíveis iniqüidade e atrocidade embutidas nas formações históricas”, conclui o filósofo.
O jornalismo está repleto dessas experiências: enquanto este texto é escrito, a busca no Google Notícias me retorna 41.800 ocorrências com a palavra tragédia. No topo das buscas, dois casos se sobressaem: o da implosão do submersível Titã, da empresa estadunidense Oceangate, e o naufrágio de embarcação com migrantes que deixou pelo menos 81 mortos no mar da Grécia. A imprensa notadamente deu destaque ao primeiro e só depois das críticas advindas das mídias sociais passou a divulgar mais informações sobre o segundo. O que isso revela sobre o modus operandi do jornalismo? E que lições podem advir dos questionamentos à primazia de uma cobertura sobre a outra? Essas perguntas não são fáceis de responder sem recorrer a generalizações e recortes. Aqui, foco num ponto fundamental da produção jornalística, os critérios de noticiabilidade e os chamados valores-notícia, ainda que não seja possível negligenciar uma ou outra questão tangencial.
A profissionalização do jornalismo e seu consequente ensino em nível superior padronizou em larga medida o olhar sobre o que pode ser notícia ou não, sobre o que tem relevância ou não, em diretrizes mais ou menos comuns: é a isto que chamamos critérios de noticiabilidade, por sua vez desmembrados em valores-notícia. O século 20, sobretudo em sua segunda metade cristalizou esses elementos, ainda que estes não sejam explícitos no cotidiano jornalístico, encontrando-se mais bem descritos pelas teorias que analisam as rotinas produtivas da notícia.
Entre esses critérios, dois se sobressaem na cobertura do Titã: o grau e nível hierárquico dos indivíduos envolvidos no acontecimento noticiável (quanto mais alta a posição do indivíduo na hierarquia social, maior a probabilidade de se tornar notícia) e seu ineditismo. Outros podem ser adicionados aí: a raridade, situação de aventura e conflito, marco geográfico (que na verdade, tem relação com as origens da OceanGate e dos passageiros do submersível) e o interesse pelo drama humano.
Do outro lado, os critérios se invertem: é essa ideia do grau e nível hierárquico, difícil de se ser ultrapassada pelas rotinas, que apaga o naufrágio com tantas perdas dolorosas, que o leva à prateleira do secundário no noticiário (quem são os migrantes?), além da sua tristíssima cotidianidade. Lamentavelmente, estamos diante de uma tragédia não esporádica, mas de uma tragédia que acontece dia após dia, ignorada por tantos, carregando pessoas sem rostos, sem nomes, para o fundo do mar – o mesmo lugar em que agora estão os passageiros do Titã. Mesmo a psicologia, nos diz: é mais fácil se compadecer de quem tem nome, sobrenome, história e rosto conhecido do que de anônimos. Na escala das aparências, que também habitam a seleção das notícias, o submersível se destaca, as vidas humanas no naufrágio nas águas da Grécia submergem.
Contudo, apesar de toda essa percepção dos engendros da produção noticiosa, atropelada pelo imediatismo cada vez maior, pelos sentidos comerciais do produto jornalístico – e mesmo pelos critérios de noticiabilidade –, essa primazia não se justifica. Um dos mais importantes deles continua sendo o interesse público, por mais abstrato que esse conceito possa parecer, por mais difícil que seja a sua definição. A tragédia da qual nos fala Puppi, aquela do mundo real, “é o sinal natural de uma grave anomalia no corpo social”. Ainda que o Titã também seja um acontecimento trágico e lamentável (não acho que alguma vida humana possa ser descartada em função da classe social), a tragédia dos migrantes nos soterra e deveria nos abater ainda mais. Essa é uma das maiores calamidades de nossa época: que a nós seja negada a possibilidade de exercermos nossa humanidade em nossa própria terra (ou naquela de nossa escolha). Que a dor e a injustiça que atira essas pessoas na água seja menor para o jornalismo é uma conta que não fecha. Enfrentar o risco da morte em busca de salvar-se a si mesmo, cotidianamente, em oceanos insondáveis, com perdas incontáveis, deveria ter um alcance maior, pois se trata, na verdade, de um fato gigante, com inúmeras camadas. Não perceber isso é, também, uma tragédia.
Em tempos de ChatGPT, o jornalismo deve, ainda mais, exercer sua função crítica e cidadã. É preciso ter tutano e responsabilidade. Selecionar as principais notícias pelo ineditismo ou grau e nível hierárquico dos indivíduos participantes ou pelos sentidos comerciais não é suficiente para realizar o trabalho com responsabilidade. Pelo contrário, nos associa ainda mais à falta de credibilidade da qual tanto gostamos de nos dissociar.
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*Rafiza Varão é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (2012), na área de Teoria e Tecnologias da Comunicação. É mestre em Comunicação também pela Universidade de Brasília (2002), na área de Imagem e Som. Graduou-se em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (1999). Leciona na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e trabalha especialmente com Teorias da Comunicação, Ética e Redação Jornalística. Coordena o projeto SOS Imprensa e é coordenadora editorial da FAC Livros.
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