Ao lado do cipreste branco
À esquerda da entrada do inferno
Está a fonte do esquecimento
Vou mais além, não bebo dessa água
Chego ao lago da memória
Que tem água pura e fresca
E digo aos guardiões da entrada
Sou filho da Terra e do céu
Dai-me de beber, que tenho uma sede sem fim
(Trecho de A fonte, música da Legião Urbana)
Foram, ao longo da Ditadura Militar brasileira (1964-1985), 17 Atos Institucionais instaurados por nossos governantes de farda. O rol de suspensões das garantias democráticas foi vasto: eleições indiretas, cassação de mandatos, extinção de partidos políticos, decreto de estado de sítio sem necessidade de aprovação pelo Congresso, civis julgados por Junta Militar, suspensão de eleições, banimento do país de qualquer indivíduo considerado perigoso pelo governo, censura e tantas outras mais difíceis de serem lidas nas entrelinhas de documentos que se colocavam como legais, mas que suprimiam a necessidade de legalidade. Entre eles, o de número cinco se somou aos anteriores, engendrando o período mais duro dos anos sob o comando militar. Em 2019, contudo, o AI-5 vem sendo evocado de maneira ameaçadora como possibilidade de sufocamento de uma nação ou de indivíduos insubmissos às ordens estabelecidas. Cabe à imprensa, diante de tamanho disparate, não só relembrar suas consequências perversas, mas se opor à sua defesa.
A história do AI-5 começa com a morte do secundarista
Edson Luís, de 18 anos, por policiais militares no dia 28 de março de 1968. Considerada a primeira execução de um estudante pelo regime, gerou revolta e manifestações populares. Em junho do mesmo ano, a passeata dos Cem Mil reuniu não só estudantes, mas muitos que estavam insatisfeitos com a ditadura no Brasil. Em setembro, o deputado
Márcio Moreira Alves acentuou a discordância entre população e governo ao discursar no Congresso, pedindo o boicote ao desfile de 7 de setembro. Na ocasião, Moreira Alves chamou os quartéis de “covis de torturadores”. As Forças Armadas solicitaram a abertura de processo criminal contra o deputado, negado por 216 dos parlamentares de então. Com a negativa, três meses depois, em 13 de dezembro de 1968, foi decretado o AI-5, fechando o Congresso Nacional e concedendo plenos poderes ao Presidente da República, o general Arthur Costa e Silva. No AI-5 estava, nas palavras da cientista política
Maria Celina D'Araujo, “a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira”.
O que se seguiu à sua publicação há até bem pouco tempo atrás era listado com rejeição e desprezo, especialmente no que diz respeito
à liberdade política e à liberdade de expressão, hoje tão bem defendidas pela
Constituição Federal de 1988. Foram anos de extrema repressão a associações, manifestações e também de excepcional facilidade em se governar por meio de decretos, com legitimidade instantânea concedida pela autoridade presidencial, não pela legalidade.
Habeas corpus, por exemplo, foram suspendidos durante esse período. Ainda que alguém fosse preso ilegalmente, não poderia ser libertado pelas mãos da justiça. Outra consequência foi a censura aos órgãos de imprensa e às atividades artísticas, indispensáveis em democracias, e essenciais mesmo para a vida humana na contemporaneidade. Mais do que censura, há que se lembrar também da perseguição.
Foi durante a prevalência do AI-5 que o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), expoente máximo de repressão do governo militar, pôde ser institucionalizado, ainda que baseado em diretrizes secretas, em 1970. Foi nos “subterrâneos” do Destacamento que o AI-5 se manifestou em suas formas físicas, encontrando sua exteriorização em prisões, torturas e assassinatos. Ativistas, políticos, artistas, estudantes, jornalistas... Qualquer tipo de possível opositor ao regime militar poderia ter seus dias interrompidos – de modo definitivo ou temporário – pela ação do DOI-CODI, liberado pelo Estado para cometer qualquer arbitrariedade.
Foram dez longos anos. De 1968 a 1978, anos de chumbo. O AI-5 não representa pequenos parênteses na nossa história, mas uma ferida que deveria incomodar a todos. A imprensa brasileira não pode tomar como banal a normalização de sua agora constante evocação, tomando parte de uma maioria silenciosa, como no livro do filósofo francês
Jean Baudrillard, que ignora ou finge ignorar os crimes contra a humanidade. A primeira página do Ato Institucional nº 5 dá arrepios, mas é preferível sabê-la a esquecê-la, como se nada houvesse acontecido. A imprensa precisa mostrar o ferimento. Crimes contra a humanidade não são piada.
Crédito:Reprodução Facebook
*Rafiza Varão é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (2012), na área de Teoria e Tecnologias da Comunicação. É mestre em Comunicação também pela Universidade de Brasília (2002), na área de Imagem e Som. Graduou-se em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (1999). Leciona na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e trabalha especialmente com Teorias da Comunicação, Ética e Redação Jornalística. Coordena o projeto SOS Imprensa e é coordenadora editorial da FAC Livros.
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